Espetáculo teve boa realização musical; encenação privilegiou a estética ao drama
Como é inspirada a música de Dido e Enéas, obra-prima da ópera barroca escrita por Henry Purcell (1659-1695). São árias e coros de grande beleza, carregadas de afeto, que narram a desesperança da rainha de Cartago, Dido, abandonada pelo guerreiro troiano Enéas. A ópera é baseada no poema épico Eneida, de Virgílio, do século anterior ao nascimento de Cristo, que trata de época mais remota ainda, a da guerra de Troia. Enéas, enviado a Cartago, é manipulado pelo feiticeiro e suas bruxas e parte para a Itália, deixando só a apaixonada Dido, que então escolhe a morte...
É equilibrada a encenação de William Pereira apresentada no Theatro São Pedro. A produção contou em sua equipe de criação com Giorgia Massetani (cenários), Olintho Malaquias (figurinos), Caetano Vilela (iluminação), Tiça Camargo (visagismo) e a coreografia de Luiz Fernando Bongiovanni. A dança é protagonista no espetáculo, acompanhando muitas cenas e em algumas delas sublinhando como um duplo as vivências interiores dos atores. Em conjunto com a movimentação dos cantores, solistas e coro, a solução garante uma boa fluência à ópera.
A montagem é despojada, tende ao clássico, com cores claras, e não há uma época definida. Cenários incluem belas cenas, como as dos grandes painéis emoldurados de desenhos arquitetônicos. O ato central, a gruta do feiticeiro e das bruxas, é escuro e vermelho. A boa iluminação potencializa os acontecimentos. As cenas se sucedem organicamente com soluções sempre bonitas e criativas, como a flecha do amor no prólogo, a paisagem naturalista no fundo do palco no segundo ato ou a tocante cena da morte de Dido com a chuva de pétalas (e a dançarina fazendo as suas evoluções). Igualmente os figurinos se valem de soluções variadas, como a de longos vestidos brancos contracenando com uniformes militares e metralhadoras de campanhas bélicas contemporâneas.
A concepção da montagem de William Pereira inclui referências a vários estilos e épocas, com um resultado bem consistente. Leio no texto da dramaturga Ligiana Costa, no programa do espetáculo, que houve a intenção de ressaltar a imagem de Dido como a rainha líder e “construtora” de Cartago em detrimento de uma visão mais “melancólica” normalmente associada à personagem. Talvez essa proposta, em conjunto com a leitura atemporal, tenha levado a um certo distanciamento do drama emocional propriamente dito. A encenação é quase uma leitura poética em que, mais do que o destino de Dido, é a estética que se impõe e que emociona.
Com arestas e contrastes típicos da música barroca, foi muito boa a interpretação musical dirigida pelo mestre da música antiga Luis Otavio Santos. Foi bom o desempenho da Orquestra do Theatro São Pedro, do coro (preparado por Marília Vargas), bem como dos dançarinos. No elenco, composto por excelentes cantores, Dido foi interpretada pela soprano argentina María Cristina Kiehr, Marilia Vargas fez Belinda, Johnny França, Eneas, e Homero Velho, o feiticeiro. Jabez Lima, Ludmila Thompson e Daiane Scales completaram o competente time de solistas.
No dia da estreia (9 de março), houve de início alguma dificuldade em equilibrar e amalgamar o som do fosso com o som do palco, assim como algumas instabilidades de afinação no elenco. Nada, contudo, que comprometesse o espetáculo, no todo bastante ambicioso em sua proposta musical e cênica.
Dido e Enéas teve quatro récitas, todas esgotadas. A apresentação do dia 11 foi gravada e pode ser assistida no YouTube, veja abaixo.
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Comentários
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Concordo com o comentarista…
Concordo com o comentarista quanto à montagem da ópera: elegante, de bom gosto, mesclando elementos clássicos com modernos e uma belíssima iluminação. Mas a Dido de Maria Cristina Kiher foi decepcionante. Eu já a conhecia de algumas gravações com grupos de música antiga europeus e sempre achei sua voz monocórdica, sem grandes expressões. Além disso, o timbre mais apropriado para a rainha de Cartago é o de meio-soprano, mais quente e expressivo (vejam-se interpretações como a da inesquecível Janet Baker ou, mais modernamente, de Anne-Sophie von Otter). Além disso, a argentina "derrapou" em vários trechos, como no recitativo "The skies are clouded...", em que os melismas saíram "toscos".
Homero Velho como a bruxa não fez muito sentido. Tradicionalmente, esse papel é cantado por um meio-soprano grave ou um contratenor; por vezes, como era costume no Barroco, um tenor pode contá-lo (o tenor por vezes era utilizado para papéis de mulheres mais velhas - veja-se a Arnalta da "Coroação de Popeia", de Monteverdi. Além disso, Homero também "derrapou" em várias passagens. Ele, na verdade, acabou cantando com o físico.
Como última observação: o inglês, principalmente do coro, deixou muito a desejar. Ora soava como britânico, ora como americano! Sem contar em erros como a pronúncia do nome da deusa Diana (daiana, em inglês), cantado como o dizemos em português.
Assisti à segunda recita (dia 10, sexta-feira). Espero que o que apontei tenha sido reparado nas récitas seguintes, pois, como um todo - principalmente em termos visuais, do desempenho da orquestra e da fidelidade ao estilo barroco - o espetáculo foi muito bom.
Valter Lellis Siqueira
Uma pena que o Theatro São…
Uma pena que o Theatro São Pedro tenha piorado tanto na venda de ingressos. Além de um parceiro de venda de ingressos pouco amigável e intrusivo, estão demorando demais em liberar a venda. Estamos a pouco mais de 15 dias das primeiras récitas de O Rapto do Serralho e os ingressos ainda não estão a venda. Parecem que só querem vender ingressos para os "Candlelight" (que já estão a venda para datas posteriores, inclusive). Triste...