A pandemia afetou duramente o meio musical mundial e o Brasil não foi exceção. Ainda assim, houve ótimos lançamentos de livros e CDs. Gostaria de comentar brevemente três discos (e um livro) de artistas experientes e que têm em comum o fato de serem lançamentos independentes.
Primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica Municipal, Mauro Brucoli é de umas das famílias mais atuantes da música em São Paulo. Ao lado de seus irmãos Fabio (violino) e Paulo (piano) integra o Aulustrio, que completa 20 anos de atividades em 2021. Em “Mauro Brucoli – violoncelo solo”, ele revisita duas peças-chave para o repertório do violoncelo no século XX: a Suíte para violoncelo nº 1 de Benjamin Britten e a Sonata para violoncelo op. 8 de Zoltán Kodály.
A peça de Britten reúne beleza e exploração das diferentes possibilidades técnicas do instrumento, enquanto a de Kodály exige o máximo de virtuosidade do intérprete. Só pelo fato de serem obras solo para um instrumento de cordas, elas já se mostrariam como um grande desafio ao intérprete. Soma-se a isso o fato de já estarem incorporadas ao repertório do violoncelo, tendo sido tocadas e gravadas por dezenas de intérpretes de fama internacional. Mauro Brucoli encara a façanha e sai-se muito bem, resultando num disco obrigatório para os violoncelistas brasileiros. (Lançamento digital disponível no Spotify.)
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O desafio de gravar um disco todo com obras solo também se aplica à Ana de Oliveira e seu “Dragão dos olhos amarelos”. Violinista de carreira internacional, Ana criou e liderou vários grupos de câmara como primeiro violino. Atualmente integra o Trio Puelli e atua como spalla da Orquestra Sinfônica Nacional.
Artista de interesses múltiplos e repertório eclético, possui dezenas de CDs lançados e realizou a primeira audição brasileira de obras como o Concerto para violino de Mário Tavares, Eterna de Egberto Gismonti e Dreamscapes de Clarice Assad.
Em 2020, no entanto, ela deu um passo além e gravou seu primeiro álbum solo e autoral. “Dragão dos Olhos Amarelos” é interessantíssimo: um disco de música contemporânea feito por alguém que é eminentemente intérprete. Suas próprias peças – como Dragão dos olhos amarelos ou Improvisos autobiográficos I e II – são fruto da improvisação e da experimentação. Trata-se do que costumamos chamar de “compositor-intérprete”, cujas obras nascem da relação direta com o instrumento.
O resultado é uma sonoridade livre de territórios e amarras que, sem ser fácil ou banal, está longe de ser impenetrável. No fino equilíbrio entre a novidade e o já conhecido, Ana de Oliveira leva para as obras ecos de seus próprios interesses, como a música contemporânea e a armorial. Completam o CD peças de Sérgio Ferraz, Eugène Ysaÿe e Hermeto Pascoal.
Se o disco foi gravado imediatamente antes do mundo se fechar por conta da pandemia, os meses de confinamento resultaram ainda na edição do primeiro livro de Ana, O violino na música contemporânea brasileira. Originalmente sua dissertação de mestrado, tem o objetivo de oferecer subsídios para a execução de técnicas estendidas ao violino, funcionando como um manual para estudantes do instrumento e de composição.
Não são muitos os materiais técnicos usados para o ensino de violino feitos no Brasil. Mais raro ainda – talvez inédito – é um manual que utilize exclusivamente trechos de obras brasileiras dos séculos XX e XXI como exemplos para as técnicas que descreve. Disco e livro de Ana de Oliveira formam, assim, duas iniciativas incontornáveis para o universo do violino brasileiro.
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Talvez ainda não se tenha a dimensão da importância dos trabalhos da cantora e pesquisadora Anna Maria Kieffer para a música brasileira. Com uma trajetória profissional que vai muito além do canto, Anna trabalha de forma interdisciplinar, articulando música com artes plásticas, literatura e cinema. No campo musical, sua atuação apoia-se em duas grandes áreas: a música brasileira do passado e a música contemporânea.
Já no finalzinho de 2020, ela e o pianista Achille Picchi relançaram um álbum fundamental. “Alberto Nepomuceno – canções”, de 1997, foi o primeiro disco totalmente dedicado à produção vocal do compositor cearense que é considerado o pai da canção brasileira. A caprichada reedição teve seus áudios remasterizados, a inclusão de novas canções e traz um livreto com textos bilíngues e as letras das 24 peças, que atestam a qualidade e inventividade da escrita de Nepomuceno. Anna Maria Kieffer e Achille Picchi atuam em perfeito entrosamento e nos trazem interpretações maduras e sofisticadas
No dia 12 de dezembro, os dois artistas participaram dos Encontros Clássicos e falaram tanto da importância de Alberto Nepomuceno quanto do cuidado que tiveram no registro das canções. Vale a pena conferir o vídeo.
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