Um concerto impactante e repleto de personalidade

Pequena e tortuosa rua no centro da cidade, a Nestor Pestana voltou a ser o endereço nobre da música de concerto em São Paulo

O Cultura Artística voltou com cara de Cultura Artística. O concerto de abertura da temporada do novo teatro mostra que a casa está pronta para recuperar o protagonismo que sempre ocupou na cena musical paulistana.

Dia 3, no concerto fechado que apresentou o teatro reformado ao meio musical, 16 anos depois, já tinha sido possível reparar nas qualidades de sua nova configuração. Porém, como João Luiz Sampaio fizera notar em seu texto no site CONCERTO, a Sinfônica Municipal era um grupo grande demais para a nova finalidade da casa, construída “tendo em vista orquestras de proporção clássica e a música de câmara”. Naquela oportunidade, como disse Sampaio, todos saíram do Cultura Artística a “imaginar com expectativa os resultados que terão as apresentações da Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen, no final de agosto”.

Bremen é a terra dos músicos que inspiraram o célebre conto dos Irmãos Grimm que no Brasil conhecemos como Os Saltimbancos, e as lembranças que deles temos por aqui são das melhores. Para ficar apenas em duas ocasiões: em 2013, sob a regência de Paavo Järvi, eles ocuparam a Sala São Paulo e o Theatro Municipal em um inesquecível ciclo integral das sinfonias de Beethoven. E, em 2022, reapresentaram Guido Sant’Anna ao público brasileiro um mês depois de sua história vitória no Concurso Fritz Kreisler, em Viena, tocando exatamente a peça que lhe rendeu o primeiro prêmio – o concerto para violino de Brahms.

Desta vez, em uma temporada que também presta tributo ao saudoso Antonio Meneses, o item de abertura do concerto da última segunda-feira, dia 26, não poderia ser mais simbólico – o primeiro movimento das Bachianas brasileiras nº 1, de Villa-Lobos, apenas para violoncelos. Garantindo o sabor e o caráter nacional da peça, o glorioso naipe germânico teve o luxuoso reforço de André Micheletti e Rafael Cesário (que volta ao palco do Cultura Artística dia 8, às 11h, solando o concerto de Dvorák com a Sinfônica Heliópolis, dirigida por Isaac Karabtchevsky), representantes da escola brasileira que teve em Meneses seu mais destacado representante.

Em seguida, foi a vez de conhecermos o item que tinha ficado de fora do concerto do dia 3 – o novo Steinway do Cultura Artística. Para exibi-lo, ninguém melhor do que o pianista canadense Jan Lisiecki, de 29 anos, responsável pela escolha do instrumento. Lisiecki, contudo, não executou uma obra de prodígios musculares e brilho exibicionista, mas sim o solar Concerto nº 4 de Beethoven. Impressionaram sobretudo as passagens rápidas, em que cada uma das notas era ouvida com clareza e nitidez, sem que por isso se perdesse o caráter de brio e bravura.

Impactante e cheia de personalidade, a leitura trouxe toda a poesia que se espera neste divisor de águas da literatura beethoveniana para piano e orquestra, acrescentando, contudo, uma bem-vinda camada de ímpeto jovial. Solista e orquestra engajaram-se o tempo todo em música de câmara, combinando timbres e frases, e ali já foi possível notar que a acústica do novo teatro permite que se ouçam com nitidez nuanças de dinâmica e sutilezas de fraseado.

A segunda metade trazia um repertório em certa medida ousado. Afinal, não é todo dia que se ouvem em São Paulo 50 minutos da música do finlandês Jean Sibelius (cujos 160 anos são celebrados do ano que vem). Eram duas sinfonias na sequência, e não as mais populares, e sim as derradeiras: a sexta e a sétima.

Chamada pelo musicólogo Gerald Abraham de “a Cinderela” das sinfonias de Sibelius, a sexta, de 1923, talvez possa ser considerada a Pastoral do compositor finlandês – e não apenas devido à numeração. Pois trata-se de uma obra antes lírica do que dramática, com relativamente poucos contrastes e marcada pela placidez.

Se a interpretação aqui foi fluida e atmosférica, o melhor estava guardado para o final. Bremen veio para o Brasil sob a direção do primeiro artista a assumir o cargo de principal regente convidado da orquestra: Tarmo Peltokski, um finlandês de apenas 24 anos, moldado na escola do mítico Jorma Panula, que tantos talentos da batuta vem fornecendo ao mundo.

Sibelius está para a Finlândia como Villa-Lobos está para o Brasil, e Peltokoski (que assumirá, nas próximas temporadas, a direção musical da Orquestra Nacional do Capitólio de Toulouse, na França, e da Filarmônica de Hong Kong) não se fez de rogado. A Sinfonia nº 7 – derradeira obra do gênero do compositor, um fluxo constante em movimento único, que Sibelius pensou em chamar de Fantasia Sinfônica – ele regeu de cor. E com que autoridade! Sóbrio, elegante e orgânico, seu gestual hierarquizou com sabedoria os planos sonoros da escrita de Sibelius, conduzindo orquestra e público pela trama narrativa urdida pela imaginação do compositor. Se seria injusto destacar qualquer naipe em um coletivo tão equilibrado e refinado, mais injusto ainda seria deixar de notar o raro veludo dos metais. Pequena e tortuosa rua no centro da cidade, a Nestor Pestana voltou a ser o endereço nobre da música de concerto em São Paulo.

Jan Lisiecki e Tarmo Peltokski em concerto no Teatro Cultura Artística [Divulgação/Cauê Diniz]
Jan Lisiecki e Tarmo Peltokski em concerto no Teatro Cultura Artística [Divulgação/Cauê Diniz]

 

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