Um espetáculo que incomoda, confunde e transtorna. Ainda bem

por Camila Fresca 21/10/2024

Em 1967, três anos após o golpe que instituiu uma ditadura militar no Brasil, Terra em transe provocava um pequeno abalo sísmico na cultura brasileira. Alegoria política amarga da América Latina, em Terra em transe ninguém se salva, não há saídas e as boas intenções estão recheadas de hipocrisia. Chegando a ser proibido por algumas semanas, o filme de Glauber Rocha tem estética inovadora e experimental e reverberou na produção artística do país. Nele, imagens grandiosas se complementam com uma voluptuosa trilha sonora, que inclui Verdi, Carlos Gomes, Villa-Lobos, samba, candomblé, canção de amor e jazz. 

Foi a magnitude da trilha de Terra em transe o impulso inicial que levou os artistas Nuno Ramos e Eduardo Climachauska a propor ao Theatro Municipal de São Paulo o “concerto-instalação” O canto de Maldoror: Terra em transe em transe, apresentado na casa no último final de semana. 

Se o filme é experimental, o espetáculo também o é. É como se víssemos/ouvíssemos Terra em transe em outro registro; como se “subindo” a intensidade do registro musical, sons e palavras se fundissem e o filme fosse apresentado de uma maneira nova. A sonoridade do filme – entenda-se música e ruídos integrados, em acelerações e desacelerações, reproduzidos pela orquestra – somada a vozes distorcidas (as falas dos personagens) a um nível quase incompreensível, forma um todo que incomoda, confunde e transtorna. Não por acaso, uma parte expressiva do público saiu até a primeira metade da apresentação de sexta-feira (dia 18).

“A primeira ideia foi simplesmente orquestrar a trilha de Terra em transe”, explicam Nuno Ramos e Eduardo Climachauska no texto de programa do concerto. No entanto, “o colapso do próprio real contemporâneo, sua dissolução entre a extrema direita, uma crise climática com aceleração de velocista olímpico, guerras com horizonte nuclear e a voz progressista posta contra a parece, pedindo desculpas por ter nascido, formaram um amálgama monstruoso, em tempo real, que o filme já não alcança de todo”, afirmam.  

De fato, a temática tão atual do filme está preservada no espetáculo e o texto, ainda que apresentado distorcido, provoca o cidadão às vésperas de um segundo turno nacional em que imperam deselegâncias, extremismo, fake news e apagões. (Em Terra em transe, extremista é o trabalhador que reivindica casa e comida para si e os seus.) 

A construção de O canto de Maldoror envolveu uma operação sofisticada em que os tempos de Paulo Martins, personagem central do filme (cujas falas foram interpretadas por Georgette Fadel e Marat Descartes) resultaram em quatro pitchs ou afinações diferentes, aplicadas a toda a trilha. Além disso, foi escrito um “Coro de Maldoror”, aproveitando uma entrevista de Glauber Rocha em que ele relata a intenção abandonada de chamar o filme de Cantos de Maldoror (título de uma obra em poesia e prosa do século XIX). Também improvisos de Juçara Marçal, em chicote ou aboio, foram retrabalhados para dar forma ao material vocal destinado ao Coro Lírico. Por sua vez, coube aos compositores Rodrigo Morte e Piero Schlochauer adaptar uma versão distorcida eletronicamente da trilha de Terra em transe para algo acústico, a ser executado pela orquestra e coro. Além dos atores, atuaram como solistas a cantora Marcela Lucatelli e o contrabaixista Marcelo Cabral.  

A orquestração das peças foi muito eficiente, por vezes estabelecendo um diálogo entre a obra original e sua distorção (que aos ouvidos soava como uma variação ou desdobramento do material musical original), criando novas camadas de interpretação. E só foi possível perceber isso graças ao trabalho cuidadoso feito pela Orquestra Sinfônica Municipal sob a direção de Luís Gustavo Petri. Ver o Coro Lírico num espetáculo como esse, soando com frescor e demonstrando envolvimento com a partitura também foi uma grata surpresa que mostra a qualidade do trabalho que a maestra Érica Hindrikson vem fazendo com o grupo. A cenografia de Laura Vinci, simples e muito bonita, trazia o palco todo aberto, com luzes em tons de amarelo, e com quatro pêndulos se movimentando acima da orquestra em diferentes velocidades.

O canto de Maldoror: Terra em transe em transe é um espetáculo que incomoda e instiga. Por vezes é o caos que nos guia e a música, tão presente na trilha sonora original, fagocita o texto no espetáculo. É muito bom que o Theatro Municipal de São Paulo seja também um espaço aberto a propostas dessa natureza.  

Ensaio do espetáculo 'O canto de Maldoror', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]
Ensaio do espetáculo 'O canto de Maldoror', no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]

 

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