Uma ode ao desejo e ao inconsciente

por João Luiz Sampaio 27/03/2023

O afeto está no centro da trilogia escrita por Lorenzo Da Ponte e Mozart. Em Don Giovanni, mistura-se à figura mítica do conquistador; em As bodas de Fígaro, à briga de classes herdada da peça de Beaumarchais. Em Così fan tutte, no entanto, aparece em seu estado puro: é o ponto de partida, o tema, e o sentido da narrativa.

Talvez por isso seja, entre as três, a obra em que há menos ação ou reviravoltas, maior concentração de cenas em espaços internos e de sutilezas na relação entre texto e música, construídas muitas vezes nas minúcias de palavras e instrumentos. É curioso que Così seja, no final das contas, a prima menos querida da trilogia; ou talvez seja por isso mesmo.

Para que os jogos propostos pela ópera se sobressaiam é preciso espaço, uma concepção cênica que os ressalte e comente de maneira precisa, mas sem limitá-los, permitindo que a música respire junto com o texto e a cena em um todo orgânico. E é essa uma boa definição para o trabalho da diretora Julianna Santos em sua produção da ópera, que abriu a temporada lírica do Theatro Municipal de São Paulo e segue em cartaz até o final de semana.

O enredo gira em torno de um experimento proposto pelo velho filósofo Don Alfonso aos jovens Ferrando e Guglielmo: eles fingem partir para a guerra, mas longo retornam disfarçados para testar a fidelidade de suas namoradas. Fiordiligi e Dorabella cederão às investidas desses desconhecidos ou permanecerão fiéis?

Julianna Santos, como afirmou em entrevistas sobre a ópera, está menos preocupada em achar a resposta ou pensar a questão da fidelidade feminina, mas, sim, em explorar as projeções que se colocam na relação entre as pessoas. Como ela mesmo colocou, "o Assim Fazem Todas do título bem poderia ser bem Assim Fazem Todos. Ou Todes". Não importa.

A diretora cria então um jogo de projeções de múltiplas camadas. Há os belos cenários de André Cortez, portas que se abrem revelando espelhos. Mas, principalmente, ele se estabelece na movimentação em cena, na posição dos cantores, no modo como se colocam sobre o palco, ocupando os espaços nos quais vão se alternando. O cenário quase único, aqui, ganha interesse especial, pois ao mesmo tempo em que dá uniformidade à narrativa, ressalta que, filtrada pelo sentimento, a paisagem, ainda que pareça, jamais será a mesma – e aqui a luz de Wagner Antônio desenvolve um papel fundamental. 

Por sua vez, as vendas usadas em algumas passagens pelo coro, ou mesmo a queda das máscaras dos amantes ao longo das cenas, muito antes da revelação do teste no final da ópera, nos colocam em contato com aquilo que é reprimido. E a mistura de delicadeza e intensidade com que isso é feito não é apenas alusão ao inconsciente: é convite para que nele mergulhemos, quebrando as resistências que categorizam ou aprisionam desejos.

A leitura musical de Roberto Minczuk à frente de uma excelente Orquestra Sinfônica Municipal também trabalha com o poder de sugestão da música de Mozart, que pode ser bastante direto na relação entre ideias musicais e sensações mas também evocar climas que abrem possibilidades de leituras. A regência não força a mão na busca de um protagonismo que naturalmente a orquestra já tem na narrativa – em que pesem momentos em que a escolha por andamentos rápidos parece atropelada.

Entre as vozes, como há muito não se via no Municipal, há um equilíbrio notável. São cantores que compartilham a atenção ao texto e um cuidadoso senso de estilo. E, individualmente, demonstram características muito marcantes: a elegância envolvente do fraseado da soprano Laura Pisani como Fiordiligi; a inteligência com que Josy Santos (Dorabella) e Michel de Souza (Guglielmo) utilizam os múltiplos coloridos vocais para construir retratos matizados e inteligentes de seus personagens; a delicadeza e atenção ao legato de Aníbal Mancini (Ferrando). Saulo Javan é um Don Alfonso sem exageros, sem histrionismo, cômico e dramático na medida do texto de Da Ponte; e Chiara Santoro, uma Despina em completo domínio da cena.

Um espetáculo redondo, bem acabado, que coloca um parâmetro alto para as obras que ainda vêm pela frente.

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Laura Pisani e Josy Santos em cena de 'Così fan tutte', de Mozart [Reprodução]
Laura Pisani e Josy Santos em cena de 'Così fan tutte', de Mozart [Reprodução]

 

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Um ótimo começo de temporada. Equilíbrio em todos os momentos e alguns destaques que valorizaram esta versão de Così fan tutte. Entre eles, a Fiordiligi de Laura Pisani me impressionou bastante. Certamente, as boas expectativas para as próximas obras aumentaram. Ainda bem!

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