Viva a ópera viva!

por Nelson Rubens Kunze 01/11/2025

Em encenação abstrata e fria, novo Macbeth do Theatro Municipal oferece performance musical de alto nível; defensores da “grande tradição operística” esbravejam na plateia 

Uma encenação moderna, com bonitos recursos luminosos e uma imensa plataforma prateada inclinada deram o tom da encenação logo no primeiro ato de Macbeth, nova produção do Theatro Municipal de São Paulo, que estreou ontem, dia 31 de outubro. No texto do programa, a diretora cênica Elisa Ohtake escreve que fez uma investigação do “sublime sombrio em Macbeth – o ‘círculo dourado’, símbolo da coroa no texto de Shakespeare, é aqui explorado em suas sombras infinitas, ecos visuais, vórtices sombrios no espaço”.

Assim, grandes círculos concêntricos ou uma esfera que toma todo o fundo do palco, em iluminações contrastadas, são recorrentes durante o espetáculo. Outros elementos em cena remetem à contemporaneidade industrial, como poltronas infláveis de plástico transparente ou os vasilhames de detergente com os quais Lady Macbeth tenta sem sucesso se livrar das manchas de sangue. Predomina uma materialidade artificial. Além disso, um enorme escorpião de plástico preto aparece em algumas cenas, uma alusão à morte pelo próprio veneno. Não há vida, não há natureza. O que há é ambição, poder e morte.

Visualmente interessante, a montagem, pela aridez cênica e predominância de contrastes luminosos e graus de cinza, transmite frieza. Figurinos combinam e são bem desenhados, mas também são escuros, de tons pretos ou ocres. Não por acaso a cena de luz amarela no início do quarto ato, a dos exilados, foi uma das mais tocantes. Bem como a cena com o círculo dourado ou a floresta que se move como em uma procissão de flores.

A opção minimalista e abstrata fez com que a narrativa ficasse um pouco comprometida. Passagens que no original contêm grande potencial dramático – a profecia das bruxas no primeiro ato, as alucinações de Macbeth durante o banquete ou as aparições no terceiro ato – acabaram perdendo força emocional. Se o recurso da plataforma inclinada tem grande impacto no primeiro e no terceiro ato, ele acabou por perder efeito, talvez pela repetição, no ato derradeiro, em que, com a imagem projetada de um céu, vai lentamente sufocando Macbeth.

Tudo poderia ter se mantido coeso, não fosse a decisão – questionável – de interromper o curso da ópera no meio do segundo ato para a projeção de um vídeo “dos bastidores”. Vemos a protagonista de Lady Macbeth explicando que temos de esperar a troca de cenários e nos levando a seu camarim, onde ela lê um trecho do texto de Shakespeare que não entrou na ópera. Pouco depois, novo vídeo mostra Macbeth nas escadarias externas do Municipal pegando pipocas com o pipoqueiro... E tudo com a estética do “ao vivo de câmara de mão”, com movimentos improvisados e closes informais.

Os vídeos foram o pretexto para que os paladinos defensores da “grande tradição operística” esbravejassem na plateia do Municipal. Em altos brados, com gritos de “vergonha!”, “fora!” e outras expressões de baixo calão, o grupo protagonizou um momento bem lamentável de radicalização e intolerância. Em reação, irromperam palmas na plateia e gritos de “silêncio” e “respeito” – e igualmente algumas outras expressões menos educadas...

É uma pena que esses senhores defensores da “grande tradição operística”, em seu estado alterado pela raiva e com o coração latejando nas têmporas, provavelmente tenham perdido o melhor da noite, que foi a espetacular performance musical. 

Em primeiro lugar, um elenco de solistas vocais de alto nível, encabeçado pela impressionante atuação da soprano Marigona Qerkezi. Nascida em Kosovo e crescida na Croácia, Qerkezi fez Lady Macbeth com voz brilhante e potente e grande empatia musical. O baixo-barítono norte-americano Craig Colclough protagonizou igualmente bem o tortuoso personagem de Macbeth, em uma interpretação de ricos matizes tímbricos. Outro destaque foi o Banquo na excelente performance de Savio Sperandio. Não é de hoje que Sperandio impressiona pela beleza e intensidade de sua voz, mas também por sua inteligência e bom gosto interpretativos. O tenor Giovanni Tristacci como Macduff também teve boa atuação, assim como Mar Oliveira como Malcolm e Isabella Luchi no papel de Lady-in-waiting.

Conduzida pelo maestro Roberto Minczuk, a Orquestra Sinfônica Municipal voltou a demostrar que está em ótima forma lírica, exibindo equilíbrio, bonito som e grande elã teatral. Já ao Coro Lírico faltou um pouco de consistência sonora e precisão, sem que isso contudo comprometesse o resultado.

Tudo somado e subtraído, Macbeth é mais uma iniciativa de alto nível do Theatro Municipal de São Paulo, que a cada nova produção fica mais lotado e repercute mais na cultura da cidade. Se na temporada como um todo sinto falta da presença de mais diretores especializados no gênero – não por acaso a dobradinha Le Villi e Friedenstag dirigida por André Heller-Lopes é destaque do ano lírico do teatro – não é possível negar a vitalidade e pujança cultural que emana da Praça Ramos de Azevedo. 

Discordâncias estéticas ou divergências interpretativas são a alma de um teatro vibrante e participativo. Viva a ópera viva!

Cena da montagem de Macbeth por Elisa Ohtake (divulgação, Rafael Salvador)
Cena da montagem de Macbeth por Elisa Ohtake (divulgação, Rafael Salvador)

 

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Comentários

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Embora eu não tenha engrossado o coro, acho válida a reação da plateia. Isto é teatro! É o que efetivamente o torna um organismo vivo, uma simbiose entre atores, músicos e público. É uma tradição e o espectador tem o direito de reagir.

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