André Mehmari: “Eu me sinto estrangeiro em qualquer lugar”

por João Luiz Sampaio 10/02/2022

Compositor, pianista, multi-instrumentista, especialista em gravação, jazzista. É difícil rotular André Mehmari. Mas é justamente na impossibilidade de rótulos que reside sua sensibilidade como artista. De hoje, dia 10, até dia 20, ele atua como músico residente no Festival Artes Vertentes, onde vai se apresentar e ouvir obras de diferentes momentos de sua trajetória. É apenas o começo de um ano que ainda reserva outros projetos interessantes, como uma encomenda para o Coral Paulistano. De Tiradentes, ele conversou com o Site CONCERTO e concedeu a seguinte entrevista.

A Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo apresentou recentemente concerto dedicado a algumas de suas obras e, agora, sua produção de diferentes períodos estará na programação do Festival Artes Vertentes. Olhar para essas peças em conjunto inspiram em você algum tipo de reflexão sobre sua criação?
Acho que é inevitável. A programação aqui em Tiradentes tem obras escritas desde 2007. Ao ouvi-las, eu me reencontro com outros tempos, com as procuras estéticas daqueles momentos. É como se fossem porta-retratos. São momentos em que retrabalho minha imagem como compositor. Mas sem o ímpeto de revisar. A obra está concluída e não sinto desejo de mexer nessas partituras.

O tempo me parece uma questão importante em sua música. No seu interesse pela música barroca, por exemplo, ou no músico de jazz, sempre atento ao tempo dos colegas no palco, ou mesmo em álbuns nos quais você reage a questões atuais, como Noturno, bastante influenciado pelo período de pandemia.
A música justamente me permite trabalhar o tempo como uma matéria plástica. Meu interesse pelo improviso passa um pouco por aí. Pois o improviso é a arte de estar no presente, interagir com ele, reagir a ele. Para mim, o tempo é tão importante quanto o som. O que me interessa como compositor é essa possibilidade de trabalhar o som no tempo. É algo orgânico, não há como se desconectar do nosso momento, mesmo quando se toca uma obra de três séculos atrás. Eu a trago para o nosso tempo, para o meu momento de vida, para o meu lugar, para o meu contexto social, o país em que eu vivo. É algo que me parece obrigatório para um músico criativo. Isso é ser contemporâneo.

Sua atividade é múltipla, compositor, pianista, jazzista, arranjador, especialista em registros sonoros. Isso foi algo que aconteceu com o passar do tempo ou faz parte de sua sensibilidade como artista?
Acho que é algo que faz parte do meu sistema operacional. Eu preciso disso. Quero muita coisa, de Monteverdi ao trabalho com Monica Salmaso, por exemplo. Atualmente, estou estudando a taba indiana, é outro sistema musical e me parece fascinante. No fundo, me interesso por tudo que não esteja na vizinhança. O improviso talvez venha daí também, o gosto por essa posição de procura pelo novo. Com 13 anos, as pessoas me perguntavam: você vai para o clássico ou para o popular? Mas eu vejo minha atividade como um grande jardim, no qual cultivo plantas de diferentes espécies. E a beleza do jardim vem dessa diversidade.

Quando o compositor Leonard Bernstein fez 70 anos, Stephen Sondheim escreveu para ele uma canção na qual falava que Bernstein não conseguia decidir entre ser maestro, pianista, compositor, professor. E terminava dizendo: por favor, não se decida.
É isso mesmo, não se decida. A dúvida é a inquietude. Ela pode ser angustiante, claro. Eu me sinto estrangeiro em todo lugar. Mas acho que as pessoas me querem por conta disso. Fui agora chamado pelo Deezer para participar de um projeto chamado Mozart Recomposed. Esse caminho tortuoso, que não é reto, me leva a encontros estimulantes e isso é importante para mim. Bernstein escreveu o único musical que consigo ouvir, West side story. Foi um grande intérprete de Mahler. E um homem de seu tempo, um educador, um comunicador. A essa altura da minha vida é extremamente claro que não pretendo me especializar, ser um especialista em algo.

Você construiu o Estúdio Monteverdi, onde algumas das principais gravações da música brasileira têm sido feitas e que músicos costumam definir não como um estúdio apenas, mas como um espaço de celebração da música. Como surgiu essa ideia?
Eu imaginava e sonhava com isso ainda criança, quando já era fascinado com a ideia do registro sonoro, muito mais do que o registro em vídeo. O registro sonoro tem uma forma especial de te transportar para outras realidades. E é especial propiciar a meus contemporâneos esse espaço, fazer dele um caminho para a preservação da nossa produção. E é um lugar de celebração como você diz. Já vi várias vezes artistas se aproximarem musicalmente lá. E é um espaço também de ouvir música, de encontros.

Antes da pandemia, você estava pronto para partir em turnê pelos Estados Unidos. E então tudo parou. Depois de dois anos, você já sente um recomeço se encaminhando?
Entramos no terceiro ano de pandemia, o que é muito pesado. Para mim, um artista que gosta de estar na estrada e que precisa do palco, tem sido difícil. Eu sinto que atuo diferente quando estou tocando para um público. Mas o retorno é lento, gradual, cuidadoso. Acho que há lugares onde eu tocaria naquela turnê que já nem existem, festivais que não conseguiram se manter. Acho que a polivalência me salvou durante a pandemia. Não parei de compor em nenhum momento. 

André Mehmari [Divulgação/CHARCAR]
André Mehmari [Divulgação/CHARCAR]

 

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