A pianista Erika Ribeiro está lançando um novo disco, o primeiro solo de sua carreira. Paulista radicada no Rio de Janeiro, onde é professora da UniRio, Erika é conhecida das plateias por seu preparo técnico e sua sofisticação musical.
O álbum, que leva seu nome, dá continuidade a algumas concepções que ficaram claras em seu primeiro disco, “Images of Brazil”, de 2018, ao lado da violinista norte-americana Francesca Anderegg. O primeiro trabalho reunia compositores brasileiros dos séculos XX e XXI e chamava atenção tanto por jogar luz a peças menos conhecidas (e boa parte nunca gravada), como por lidar com fluidez com o repertório, indo de um erudito sem concessões como Camargo Guarnieri a Léa Freire.
No segundo disco, o repertório traz um nome central do modernismo do século XX, Igor Stravinsky, ao lado de dois autores cujas obras fazem pontes entre o XX e o XXI: a também russa Sofia Gubaidulina – mulher compositora que, numa área em que a desigualdade de gênero é gritante, impôs-se como uma das criadoras mais importantes da música contemporânea – e o “mago” brasileiro Hermeto Pascoal, cuja inventividade é unanimemente reconhecida, mas que raramente é tocado por intérpretes dedicados ao repertório erudito.
A verdade é que Erika não apenas continua, mas expande as concepções do trabalho anterior ao adicionar um novo elemento: o das transcrições, tradição que o piano cultiva desde pelo menos o século XVIII, embora tenha perdido força com a disseminação das gravações. São dela as transcrições de todas as peças de Stravinsky presentes no disco: Três poesias da lírica japonesa (1913, para voz e grupo de câmara); Quatro canções russas (finalizadas em 1918, para voz e piano); e a brevíssima Epitáfio (originalmente para flauta, clarinete e harpa).
Também foi transcrita para o piano Série de arco, que Hermeto Pascoal escreveu em 1982 para uma coreografia da série de arco de ginástica rítmica da irmã de seu pianista, Jovino dos Santos Neto. Só Brinquedos musicais, uma das poucas peças que Sofia Gubaidulina escreveu para o piano, em 1969, aparece em sua versão original.
Com pouco mais de meia hora de duração, o disco é uma coleção de miniaturas musicais, reunidas por uma intérprete que foge do óbvio. Uma audição de descobertas e surpresas musicais, que mostra a maturidade do trabalho atual de Erika Ribeiro.
Atualmente só disponível por streaming, o disco logo será lançado em vinil, formato que tem surpreendentemente ganhado espaço nesses tempos em que as mídias parecem fadadas a desaparecer. Fiz uma pequena entrevista com Erika sobre o novo disco, que você pode ler a seguir.
Você retoma uma tradição importante do piano ao realizar transcrições de obras originais para outras formações. Você partiu do desejo de realizar transcrições para o piano ou foi a escolha do repertório que te levou a isso?
Sempre fui fascinada por transcrições pianísticas de Liszt, Rachmaninov, Feinberg e alguns de meus discos favoritos (como os de Vladimir Horowitz e Arcadi Volodos) pertencem a pianistas desta tradição. Transcrições devolvem algo de autoral ao instrumentista, proporcionando uma liberdade de interpretação e trazendo sua natureza à tona, algo que muito me interessa como artista. Quando pensei em um disco solo, me imaginei realizando algo que me possibilitasse esse frescor, portanto esse foi o ponto de partida. Como possuo experiência como correpetidora, e já trabalhei por muito tempo com reduções orquestrais, esta habilidade me forneceu ferramentas para o mergulho em um trabalho artístico que apontasse nessa direção.
No repertório, dois russos muito prestigiados em seu tempo, e um brasileiro igualmente prestigiado, mas que apesar de uma produção de grande inventividade, não costuma ser aproximado dos compositores eruditos. Como você desenhou esse repertório?
Acho importante que a minha geração reveja os rótulos normalmente adotados para a música “erudita" e “popular” no Brasil, e comece a conhecer música no que ela tem de essencial. Em meus concertos, procuro me aproximar da música brasileira e latino-americana em suas inúmeras vertentes, e por isso contemplar Hermeto Pascoal fez muito sentido. Série de arco é uma peça importante, que possui procedimentos harmônicos semelhantes aos que encontramos em Stravinsky. Acredito que esse paralelo agregou uma potência ao disco, além de representar em sons o olhar do Brasil à Rússia.
Imagino que esse olhar, essa abertura, tenha algo a ver também com a sua pesquisa de doutorado, concluída recentemente. Poderia explicar do que se trata e como ela se relaciona com as suas escolhas para o disco?
Em minha pesquisa de doutorado estudei o termo pianismo, ordinariamente usado por nós pianistas para descrever múltiplos procedimentos ao piano, da interpretação à criação, utilizando como argumento de estudo o disco “Alma” de Egberto Gismonti. De fato, a tese de doutorado se relaciona ao que fiz neste disco. Muitos dos processos criativos que descrevi, acabei botando em prática – o que me deu trabalho enorme, mas uma grande satisfação, aquilo que a gente chama de “problema bom”.
Para além da interpretação propriamente, o projeto é muito bem cuidado – escolha de repertório, capa do disco, vídeo e fotos. Como se deu todo esse processo? E por que lançar um disco de piano em vinil em 2021?
Em 2019, recebi o convite da gravadora Rocinante para um disco solo. Como eles priorizam o vinil como a mídia física de seus projetos, eu já sabia que seria assim, o que me deixou ainda mais empolgada para esta empreitada. Começamos eu, Sylvio Fraga e Bernardo Ramos (produtores do disco) a pensar no repertório, em algo que tivesse certa singularidade, que ainda não tivesse sido feito. Em 2020, com o mundo parado, tive a introspecção necessária para escrever e começar a testar as transcrições ao piano. A peça de Sofia Gubaidulina veio depois, e uma vez que tudo tomou forma marcamos a gravação no estúdio de Araras, Rio de Janeiro, quando o João Atala se juntou a nós, e realizou o minidocumentário e as fotos.
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