Uma conversa com Carlos Kater sobre Villa-Lobos

por João Marcos Coelho 27/07/2024

Na edição de agosto da Revista CONCERTO, João Marcos Coelho dedica sua coluna ao livro de Carlos Kater sobre o compositor Heitor Villa-Lobos, lançado em edição digital (leia o texto aqui). A obra, Encontros com Villa-Lobos, que pode ser baixada gratuitamente aqui, traz entrevistas com músicos e outros profissionais que tiveram contato com o compositor. 

Abaixo, a entrevista completa com Kater. 

O que considera mais importante entre o que diz Villa-Lobos, inéditas e/ou fundamentais?

Muitas coisas ditas por Villa-Lobos na entrevista a Madeleine Milhaud me surpreendem muito! Quando, na minha pesquisa em Paris, localizei esse material, fiquei na verdade um tanto chocado e decepcionado, pois algumas de suas colocações iam no sentido contrário da imagem que eu fazia dele. Algumas de suas afirmações em relação a determinados conceitos estão ainda mais hoje em completa discrepância com o entendimento que temos deles. Aliás, penso que devemos estar atentos ao interpretar certas passagens, pois a falta de domínio do idioma francês limitava bastante a sua expressão, como podemos escutar na gravação original e conforme também Pierre Vidal comenta em sua entrevista. Dentre as várias falas de Villa na entrevista, há uma frase que me chama particularmente a atenção: “Para mim, um compositor deve ser um homem de imaginação original e jamais um continuador de outro”.

Para mim, um compositor deve ser um homem de imaginação original e jamais um continuador de outro [Villa-Lobos]

Temos aqui a medida da importância que ele atribuía à originalidade como elemento de validação da criação e da invenção musical. Isso se atesta pela potencia inventiva que ele pôs em suas composições, sobretudo daquelas realizadas nas décadas de 1920 e 30 (suas produções mais revolucionárias, a meu ver). Essa busca de originalidade (ou ainda de construção da originalidade) se manifesta como impulso criativo amplo, para além da composição musical, também na proposta educativa que formulou.

Mas, atenção, ela não se restringiu a meu ver no empenho de implantação do Canto Orfeônico em si (pois antes dele, no Brasil, essa prática já havia sido exercida por João Gomes Júnior em São Paulo, Fábio Lozano em Piracicaba, além de João Batista Julião). Ela se expressa a meu ver sobretudo na construção dos elementos necessários para a preparação de sua prática, na seleção de músicas da tradição brasileira de diversas regiões e na criação de arranjos originais, constituindo assim um valioso repertório de trabalho, que permanece até hoje como uma espécie de “registro documental criativo”. 

Ao lado disso, há ainda os efeitos orfeônicos que ele concebeu e regeu em estádios de futebol com mais de 10, 15, 20 mil vozes, “paisagens sonoras”, avant la lettre! Essa dimensão de seu trabalho é ainda hoje pouco conhecida e considerada por muitos educadores e estudiosos da educação musical, e atesta igualmente a originalidade de Villa entre nós e o relativo vanguardismo que representou para o meio educativo musical de sua época. Mindinha, Mignone e Magda Tagliaferro, entre vários outros entrevistados, quando perguntados sobre os efeitos orfeônicos, mencionam, ao lado do ineditismo da proposta, o imenso impacto que provocava tanto para quem os produzia, quanto, e em especial, para o publico presente. 

Retomar a afirmação de Villa-Lobos (em que reivindica a originalidade para o compositor) nos permite ainda compreender, em parte que seja, a sua reação visceral face à declaração pública de Camargo Guarnieri ao se considerar influenciado por ele e, nesse sentido, uma espécie de continuador de sua obra. Bem, mas este é um outro assunto, evocado, de maneira parcial, com discrição e sutileza, nas entrevistas de Mignone e de Homero Magalhães, cuja leitura vale muitíssimo além desse fato! 

Se precisasse sugerir apenas a leitura de uma única entrevista, qual a que te pareceria mais abrangente para mostrar quem é o Villa-Lobos real?

Cada uma das entrevistas revela uma faceta particular de um mosaico amplo, rico e complexo, que, a meu ver, representa a maneira como Heitor Villa-Lobos é concebido por nós. Minha opção por publicá-las reunidas, como uma espécie de antologia, teve justamente por objetivo evidenciar esse aspecto. Ao mesmo tempo, porém, cada uma das entrevistas expressa a percepção e o entendimento pessoal de cada um dos próprios entrevistados, não só a respeito do grande compositor brasileiro, mas sobre o contexto de suas ações e das forças vivas de seu momento histórico. 

A entrevista de Mindinha revela aspectos mais próximos da vida de Villa-Lobos; a de Luiz Heitor, considerações de caráter mais musicológico; a de Souza Lima, depoimentos valiosos sobre projetos vivenciados em comum; a de Anna Stella Schic, uma mescla de aprendizados e pessoalidades, e por aí vai...

Acredito contudo que, para nós brasileiros, a entrevista de Pierre Vidal (músico e musicólogo francês) oferece um testemunho único de momentos da passagem, nos anos 50, de Villa-Lobos em Paris: um Villa-Lobos “visto do lado de lá”, que possui assim um valor especial (afora as considerações musicológicas perspicazes de Vidal sobre a produção dele). E, até onde tenho conhecimento, é a sua única entrevista sobre Villa-Lobos concedida a um brasileiro e, em especial, acessível ao público brasileiro. 

Como cada entrevista ilustra uma parte de um grande móbile que chamamos “Villa-Lobos”, cada pessoa percebe ou faz a representação de apenas uma ou algumas das partes dessa totalidade

Como cada entrevista ilustra uma parte de um grande móbile que chamamos “Villa-Lobos”, cada pessoa percebe ou faz a representação de apenas uma ou algumas das partes dessa totalidade. De maneira que, nessa ótica, o sentido e valor maior desse livro se dirigem ao conjunto e não às suas partes. No entanto, a entrevista de Mignone foi talvez a que mais me surpreendeu do ponto de vista da lucidez de compreensão e da maturidade crítica. De sua voz já relativamente abafada pela idade, pode-se conhecer as buscas e convicções de toda uma vida, com ponderações agudas e “justas”, diria, sobre questões fundamentais da realidade musical de sua época e de “hoje”, e com uma visão arguta de seus principais protagonistas.

Ao escutar Mignone, Guarnieri e Villa, não posso deixar de me perguntar quem teria sido o “Janjão”, do Banquete, imaginado por Mário de Andrade... Um deles (qual?) ou na realidade uma personagem mista, fusionando as buscas e realizações, as virtudes e as limitações desses três grandes compositores que marcaram genuinamente o seu tempo? Escutar cada um desses depoimentos nos remete a uma história maior de nossa cultura.

Qual a sua visão sobre Villa-Lobos? O que ele possui como aporte para o seu trabalho? Que semelhanças e diferenças pode haver entre o seu trabalho educativo e aquele proposto por Villa?

Guardadas as devidas proporções, evidentemente, penso que há, no que procuro realizar na educação musical, uma intenção muito semelhante, que é a de acreditar no poder da música em motivar transformações sociais e sobretudo no poder da educação musical em promover processos formadores humanos. 

Chamam-me a atenção as semelhanças de intenção que podemos observar entre os projetos desenvolvidos por Heitor Villa-Lobos e por Hans-Joachim Koellreutter, do ponto de vista do empenho em criar uma música brasileira (embora isso corresponda a estratégias de ação e resultados muitíssimo distintos), bem como ainda na preocupação de oferecer uma educação ampla, coletiva e social, para e pela música. As contribuições que legaram ao Brasil, Villa-Lobos, com suas composições e o movimento de Canto Orfeônico, e Koellreutter, com a Música Viva e suas diversas frentes de atuação, podem ser percebidas numa ótica comum em alguns lócus de intenção e propósito:

1) criação de uma vertente estética capaz de representar a criação musical brasileira; 
2) reivindicação de condições favoráveis para o exercício profissional dos músicos no país; 
3) promoção de uma nova representação da música brasileira com inserção no cenário internacional;
4) difusão da criação musical, por meio de projetos educativo-musicais, implantados em larga escala, na sociedade de seu tempo.

Mas há, na minha opinião, um elemento essencial comum que une e dá sentido a isso, a determinação. A existência de uma intenção sincera aliada a uma dedicação intensa, de uma meta mais elevada no percurso de vida e profissional, lhes permitiu enfrentar adversidades do cotidiano, transcendendo as questões básicas da existência ordinária e os limites frequentemente impostos pelas pequenezas humanas. Dessas realizações fica para mim (e espero que para muitos de nós!) não o exemplo, mas a lição a ser tirada (Mário se referiu a isso em relação ao modernismo). Realizar aquilo que em princípio cabe apenas a cada pessoa tornar realidade, a melhor contribuição, única e original, de cada indivíduo, de forma determinada e em interação com o coletivo, para a sociedade de seu tempo.

...a preocupação de buscar sempre uma música nova que seja nossa e ao mesmo tempo uma música nossa que seja nova

De toda maneira, quando considero alguns dos desafios da educação musical no Brasil atualmente, me vem à mente uma antiga ponderação de Renato Almeida... a preocupação de buscar sempre uma música nova que seja nossa e ao mesmo tempo uma música nossa que seja nova. Penso que tenha sido essa também a meta perseguida por Villa-Lobos, na música certamente mas igualmente na educação, no seu projeto do Canto Orfeônico. 

E esse é também um dos motes que inspiram o projeto “A Musica da Gente” desde o início de sua implantação em 2013, numa escola pública de São Bernardo do Campo, passando por escolas da rede Sesc de diversas regiões do Brasil, ampliando-se na formação de professores das escolas da Secretaria de Educação do município de SBC, tendo atingido cerca de 30 mil pessoas, até o momento. Seu foco central está na criação de músicas originais, nossas e novas, com ênfase na instrumental e fundadas na pesquisa expressiva e exploração sonora, na experimentação estética e musical. E, do ponto de vista da educação, no sentido da formação musical, possui um característico viés humano, enfatizando – não mais a disciplina, o civismo, o patriotismo – mas questões relacionadas à auto-observação, ao conhecimento de si, ao desenvolvimento pessoal, mediante o trabalho de grupo.

Descobrir e inventar na música o nosso-novo com curiosidade e prazer e, ao mesmo tempo, experimentar no processo formador o prazer e a coragem da descoberta do novo-nosso (que é também o “outro”, o diverso e diferente) é o que acredito ser a meta maior da educação musical entre nós atualmente. O projeto AMDG provoca situações e busca oferecer condições para que, através da música e de sua criação, os estudantes se conheçam melhor e se responsabilizem de seus limites (para superá-los) e de suas qualidades (para desenvolvê-las), a fim de trabalharem em conjunto, com eficiência, respeito, e alegria (“a prova dos nove”, segundo Oswald). Cada pessoa, ao se expressar de maneira sincera, original e legitima, através da criação musical, estará em medida de ampliar o patrimônio cultural vigente, bem como de contribuir para que a música seja de fato a representação do estágio de evolução da consciência humana através dos sons.

Apresentação do projeto de canto orfeônico de Villa-Lobos [Reprodução/Museu Villa-Lobos]
Apresentação do projeto de canto orfeônico de Villa-Lobos [Reprodução/Museu Villa-Lobos]

 

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