Obras serão apresentadas ao longo do mês pela Filarmônica de Minas Gerais e pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo
Após ser traído por uma mulher, o sultão Sharyar adquiriu o hábito de vingar-se de todas as outras, ao casar-se com uma esposa por dia e executá-la na manhã seguinte. Sua carreira de serial killer misógino acaba quando ele conhece Scheherazade, que tramou contar uma história envolvente ao sultão a cada noite, instigando sua curiosidade para que a sequência fosse revelada apenas no próximo dia, o que lhe permitia adiar sua execução. Após três filhos e mil e uma noites de contos mágicos, Scheherazade foi finalmente salva por sua astúcia e reconhecida pelo sultão.
De autoria anônima e coletiva, o Livro das Mil e Uma Noites aparece mencionado inicialmente no século IX, para adquirir sua forma atual nos séculos XIII/XIV. Escrito em árabe, foi traduzido para o francês em 1704, adquirindo desde então imensa repercussão no Ocidente – a ponto de inspirar obras-primas musicais de dois dos maiores orquestradores de todos os tempos, o russo Nikolai Rímski-Kórsakov (1844-1908) e o francês Maurice Ravel (1875-1937).
A suíte sinfônica Scheherazade é a partitura mais difundida de Kórsakov. Sua ideia – assim como de outra peça célebre, a abertura Grande Páscoa Russa – surgiu no inverno de 1888, logo após do nascimento da filha Maria, quando Kórsakov trabalhava na conclusão da ópera Príncipe Igor, deixada inacabada pelo falecimento de Aleksandr Borodin (1833-1887) – seu amigo e colega no Grupo dos Cinco, coletivo de compositores que almejava definir a identidade nacional da música russa no século XIX.
Nos autobiográficos Anais de Minha Vida Musical, o compositor conta que que escolheu episódios do Livro das Mil e Uma noites sem ligação entre si, e que o solo de violino retrata Scheherazade narrando seus contos maravilhosos para o sultão. Adverte, porém, que é inútil buscar na suíte leitmotifs firmemente ligados aos episódios do livro. “Pelo contrário, na maioria dos casos, todos esses aparentes leitmotifs não são nada além de material musical puro, ou motivos para a elaboração sinfônica”. Kórsakov afirma ter desejado conferir à suíte o aspecto de um “caleidoscópio de imagens de contos e desenhos de caráter oriental”. Tanto que sua intenção original era dar a cada um dos movimentos os títulos de Prelúdio, Balada, Adagio e Finale; contudo, seguindo o conselho de seu aluno Anatóli Liádov (1855-1914), as partes da obra acabaram sendo batizadas com denominações descritivas: O mar e o navio de Simbad; O conto do príncipe Kalendar; O jovem príncipe e a jovem princesa; Festa em Bagdá.
Talvez a relação frouxa que o próprio Kórsakov assumiu haver entre sua criação e os títulos programáticos tenha estimulado o coreógrafo Michel Fokine e o pintor Léon Bakst a criarem um argumento completamente novo ao transformarem Scheherazade em balé.
A iniciativa aconteceu no âmbito dos Ballets Russes, a usina de criação chefiada pelo empresário Serguei Diághilev (1872-1929) entre 1909 e 1929, e que recrutou, além de luminares da dança, nomes de ponta das diversas áreas das vanguardas da criação artística de seu tempo, como Stravinsky, Debussy, Prokófiev, Kandinsky, Picasso, Matisse e Coco Chanel.
Estreada no Palais Garnier, em Paris, em 1910, Scheherazade trazia o legendário Nijinsky no papel do Escravo Dourado que seduz Zobeide (então dançada por Ida Rubinstein), a favorita do sultão Sharyar, que por fim entra no palácio e condena todos à morte. Nada do mar tão caro ao marujo Kórsakov, nem de Simbad ou de Kalendar; a ideia era unir erótico e exótico, bem ao gosto da esfuziante Paris da belle époque.
Era uma Paris que se abria para o mundo em todas as artes – e cujos compositores voltavam-se para o Leste em busca de inspirações diferentes dos ventos de uma Alemanha com a qual seu país estivera (e voltaria a estar) em guerra. Um grupo de jovens dândis que se intitulavam apaches (como os indígenas norte-americanos) reunia-se aos sábados para ler poesia, ouvir música, falar mal das óperas de Wagner e cultuar Pelléas et Mélisande, de Debussy.
Um membro desse grupo era o compositor Maurice Ravel (ao qual mais tarde Ida Rubinstein encomendaria o Bolero). Outro, o poeta Tristan Klingsor (1874-1966), que escrevera uma série de poemas inspirados na narrativa árabe. Ao lê-los, em 1903, Ravel viu a chance de acertar as contas com o Livro das Mil e Uma Noites: sua primeira partitura orquestral, uma abertura intitulada Shéhérazade, inspirada em Kósakov (cuja suíte sinfônica foi tocada em Paris já em 1889), fracassara na estreia, em 1899, e foi publicada apenas postumamente, em 1975.
O compositor optou por três textos de Klingsor: Asie (Ásia), a canção mais longa (com duração maior do que a soma das duas que vêm depois), foi colocada em primeiro lugar, com seus efeitos operísticos e orquestração grandiloquente sendo seguidos pela simplicidade de La Flûte Enchantée (A Flauta Mágica) e pela ambiguidade lânguida de L’Indifférent (O Indiferente). Não se trata aqui de narração, senão de sugestão; o Livro das Mil e Uma Noites não aparece em seus episódios específicos, e sim como pretexto para uma evocação subjetiva de um ambiente orientalizante.
A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais toca nos dias 6 e 7, em Belo Horizonte, a Shéhérazade, de Ravel (leia mais aqui); já nos dias 14 e 15, as peças de Ravel e Rímski-Kórsakov serão tocadas pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, no Theatro Municipal de São Paulo (leia mais aqui)
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