Produção da ópera 'Risurrezione' mostra que o compositor Franco Alfano tinha um gênio próprio, de intensidade musical compacta, o que lhe permitia ultrapassar as pulsões sentimentais imediatas para tecer uma trama de sons espessa e que leva o ouvinte a sentir a própria condição humana dos personagens
Os suportes físicos para música e imagem – os CDs ou DVDs – praticamente desapareceram, substituídos pelos streamings diversos. Os DVDs para ópera permanecem ainda um pouco mais: a disponibilidade de títulos na internet é relativamente pequena e motiva a compra de novidades. Além disso, a excelência própria à qualidade sonora dos Blu-ray anima as aquisições.
As facilidades de gravação visual que se tem hoje, de custo relativamente baixo, permitem captar espetáculos. Uma política inteligente de escolhas leva as editoras a apresentarem um catálogo de obras que se tornaram raras no repertório. O selo Dynamic teve a excelente ideia de publicar uma apresentação da ópera Risurrezione, de Franco Alfano (1904).
Desde que descobri essa ópera em áudio, graças a um registro da RAI, com a diva trágica Magda Olivero, em 1972, eu me apaixonei por ela. Risurrezione continua despertando em mim um sentimento de perplexidade: como é possível que uma composição magistral e, além de tudo, reservando um papel de ouro para qualquer soprano lírico-dramático, tenha desaparecido do repertório e sido desdenhada pelos teatros?
Alfano permanece na memória dos frequentadores de ópera graças ao final de Turandot, que ele compôs para completar a partitura inacabada de Puccini. Os mais interessados conhecem a ainda o estupendo arioso do segundo ato de Risurrezione, “Dio pietoso”, que algumas célebres cantoras, desde Mary Garden, gravaram em disco. É muito insuficiente. Apenas Risurrezione bastaria para assinalar a grandeza de seu autor.
É, portanto, muito bem-vinda a edição em DVD de uma apresentação dessa ópera. Uma coisa é conhecer a obra por gravação, libreto, partitura. Outra, é perceber o que ela pode oferecer no palco.
A montagem é do Maggio Musicale Fiorentino, festival que se tornou, hoje, apenas uma sombra da grandeza passada, em termos de recursos e ambições artísticas. Mas que soube trazer do Wexford Festival Opera essa montagem: o Wexford é um festival que ocorre na Irlanda e que se especializou em óperas esquecidas.
Por sorte, a concepção cênica de Rosetta Cucchi não entra em conflito com a obra, nem a neutraliza (como aconteceu, em 2016, no Teatro alla Scala de Milão, com La cena delle beffe, de Giordano, cujo revival fracassou, em grande parte por causa da terrível mise-en-scène). A montagem é discreta, em alguns atos enxugando muito o cenário e transformando a apresentação numa épura semicênica. O primeiro ato demora um pouco para engrenar, porque os cantores, de maneira exterior, obedecem apenas à marcação genérica, encarnando pouco os personagens. Mas progressivamente, na medida em que, mais e mais, tudo se concentra em Katiusha, sustentada pela francesa Anne Sophie Duprels, a força da obra se impõe.
Risurrezione é baseada no romance Ressurreição, de Tolstoi. O núcleo da trama é o da prostituta redimida – tema frequente no imaginário do século XIX e do início do XX, a começar por A dama das camélias, de Dumas, que virou a Traviata de Verdi, passando mesmo por práticas vividas, como a de van Gogh e sua vã tentativa de restaurar a dignidade de Sien, com quem viveu algum tempo. A este tema mais genérico, acrescenta-se o do patrão rico que engravida a empregada bonitinha.
Tolstoi, porém, centra-se na consciência de Dimitri, o nobre rico que abusou de Katiusha: é ele o personagem principal, que, no final do romance, graças aos evangelhos, encontra a ressurreição mística. Katiusha, no livro, tem menos importância. Desse modo, se sua degradação humana na ópera é tremenda e sórdida, no romance, vem muito menos acentuada. Ela se mescla à trama absurda e indigna da máquina judicial, que Tolstoi esmiúça e que, para ele, mostra-se o principal objeto de denúncia. É significativo que a cena do julgamento, longamente descrita no romance, não esteja presente na ópera, mas que algumas poucas linhas aludindo à espera angustiada de Katiusha na estação de trem tenham se transformado num espantoso segundo ato construído quase que como um longo monólogo.
Muitos críticos, por causa do final de Turandot, quando falam de Alfano, tratam-no como um sub- Puccini. É uma bobagem
O libreto de Cesare Hanau não se baseia diretamente no romance, mas numa versão teatral dele, assinada por Henry Bataille, autor de grande sucesso na época. Imagino que Bataille tenha feito essa adaptação do romance para valorizar alguma grande atriz num excepcional papel trágico, o que determinou o mesmo recorte no libreto, tornando Katiusha o eixo absoluto.
Resulta com isso, depois de um breve idílio, a descida dessa mulher infeliz a um inferno imundo, quase escabroso, antes de, finalmente, atingir a redenção. Alfano não cede nunca ao sentimentalismo, e elabora as situações complexas, com força muito original, graças a uma fúria genialmente orquestrada, e à linha melódica que recusa qualquer facilidade lírica para se dar em bruscas ascensões intensas, nervosas, contrastantes.
Muitos críticos, por causa do final de Turandot, quando falam de Alfano, tratam-no como um sub Puccini. É uma bobagem. Alfano tem um gênio próprio, de intensidade musical compacta, por assim dizer, o que lhe permite ultrapassar as pulsões sentimentais imediatas, habitualmente oferecidas por melodias deleitosas, para tecer uma trama de sons espessa e que leva o ouvinte a sentir a própria condição humana dos personagens. É assim que Somonov, aparecendo apenas no quarto ato, contém uma intensidade muito além daquela própria aos papéis secundários – no DVD, ele foi cantado admiravelmente pelo baixo Leo Kim.
A redução metamórfica do príncipe Dmitri, passando do romance para a ópera, torna-o um pouco esquemático; mas o quarto ato, quando Dimitri compreende a redenção de Katiusha, oferece a ele um maior estofo. O tenor Matthew Wickers cumpre, na medida de suas possibilidades, as exigências do papel.
Em suma, um DVD a ver, rever, absolutamente, a fim de descobrir e penetrar uma grande obra. Esperando outras versões e que ela volte a ser programada nos teatros.
Pós-escrito – Creio que Risurrezione tem pontos em comum com a ópera Alma, de Claudio Santoro, que foi montada exemplarmente no Festival Amazonas de Ópera, em 2019, e que pode ser vista aqui.
Creio ainda que Risurrezione se sustenta, dignamente, ao lado de uma obra-prima como Jenufa, de Leoš Janáček, com a qual possui também pontos de contato.
De Alfano existe ainda, em DVD, um Cyrano de Bergerac, com Roberto Alagna no papel título, editado por Levon Sayan (2005).
O DVD da ópera 'Risurrezione', de Franco Alfano, está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui.
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