Quando a ópera encontrou o cinema, diretores descobriram a possibilidade de tirar as histórias narradas do palco e levá-las para locações. La Traviata foi filmada em salões parisienses; Tosca, nas ruas de Roma; Don Giovanni, em Sevilha; Macbeth, em um castelo na Escócia. Essa versão operística de hiper-realismo mexeu com o gosto da segunda metade do século XX e teve consequências também no palco – nem que fosse para reafirmar a necessidade de questioná-la e de buscar outros caminhos.
Décadas depois, a ópera sai do palco mais uma vez. É, desta vez, um movimento forçado, provocado pelos problemas sanitários trazidos pela pandemia. Ainda assim, não há motivo para não aproveitarmos este momento. Sem pânico: a importância do teatro de ópera para a ópera está mais do que consolidada; mas a percepção de que o gênero tem algo a ganhar fora dele tem uma chance para ser testada e experimentada.
Na semana passada, uma nova produção de O telefone, de Menotti, apresentada pela internet, fez exatamente isso. A ópera foi filmada na Casa da Frontaria Azulejada, em Santos. Um cenário histórico para uma história moderna, em um diálogo recriado com imaginação e vigor pela diretora Julianna Santos e a cenógrafa Giorgia Massetani. Menotti falava, nos anos 1940, sobre o impacto da tecnologia (o telefone) nas relações humanas. Hoje, a tecnologia é outra, mas não se fala de outra coisa além da intensidade de seu impacto. E a mistura de épocas, da maneira como foi usada, só ressalta o atemporal da história.
O espetáculo pode ser visto ainda no YouTube, com direção musical de Luis Gustavo Petri, Flávio Lago ao piano e dois grandes intérpretes: a soprano Raquel Paulin e o barítono Johnny França. Difícil pensar hoje em futuro, com todas as dificuldades a serem enfrentadas. Mas ele existe.
Cartas líricas
A história da ópera está repleta, nas palavras da compositora Jocy de Oliveira, de “divas trágicas fadadas ao sofrimento e à morte”. Elas existem em óperas criadas por homens, nas quais seus desejos e vontades vivem a reboque do desejo masculino. Nosso tempo questiona essa dinâmica em todos os aspectos da vida em sociedade. E não há motivo para não o fazer também no olhar que oferecemos para a arte do passado.
Como? Não há certamente resposta fácil. Mas a oferecida pelo minidocumentário Cartas Líricas, dirigido por Ligiana Costa, é estimulante. Ela pediu a artistas que escrevessem cartas a personagens de óperas. As sopranos Carla Cottini, Edna D’Oliveira, Luciana Bueno, Maria Castillo e Marsha Thompson escreveram para Gilda, Treemonisha, Dona Elvira, Tosca e Aida. A poeta Francesca Cricelli, para Mimi; a diretora Julianna Santos, para Alma; as compositoras Jocy de Oliveira e Ellen Reid, para Mathilda Segalescu e Bibi; a pesquisadora Marlui Miranda, para Ceci.
São diálogos pessoais, nos quais elas se voltam às personagens com carinho, encontrando em suas tragédias inspiração para lidar com as tragédias que ainda enfrentam. Afinal, o mundo de Tosca, diz Maria Castillo, primeira artista trans a se apresentar no Teatro Colón, de Buenos Aires, ainda é o nosso. Assim como o tráfico de corpos femininos e negros, lembra Marsha Thompson, não é algo perdido no passado.
Há uma potência enorme nesses depoimentos. “Eu te acolho, te abraço, a partir da sua história, para poder escrever outras histórias, de outras maneiras”, diz Julianna Santos em sua carta a Alma. E isso parece já ter começado a acontecer.
No palco e fora dele
Na esteira da retomada das atividades musicais nos Estados Unidos, a Ópera de Los Angeles já anunciou sua temporada 2021/2022. Mas segue com um projeto que ganhou força durante a pandemia, criando filmes a partir de trechos de óperas contemporâneas.
São filmes extremamente bem-produzidos, feitos em locações das mais diferentes. Em Proving Up, de Missy Mazoli, a filmagem se deu em uma densa floresta, recriando o clima claustrofóbico de uma história sobre família e morte ambientada nos anos 1860, em meio ao processo migratório em direção ao oeste dos Estados Unidos.
O novo filme, Let me come in, conta com a participação da soprano Angel Blue. Não se trata de uma ópera, mas de parte de um projeto do compositor David Lang com textos religiosos em diferentes idiomas e culturas, com o objetivo de mostrar que, colocados lado a lado, oferecem significado diferentes para o conceito de crença. Ainda assim, o resultado do vídeo, dirigido por Bill Morrison a partir de cenas de um filme mudo dos anos 1920 recém-descoberto, é testemunho da vitalidade que existe na exploração das possibilidades de combinação entre texto, música e componente visual.
Vozes pela Covid-19
A Ópera Estatal de Hamburgo anunciou a colaboração, a partir deste mês, com a Universitätsklinikum Hamburg-Eppendorf em um projeto dedicado a auxiliar na reabilitação de pacientes que se recuperaram da Covid-19. Cantores da companhia vão participar de sessões dedicadas a reparar músculos respiratórios enfraquecidos pela doença, oferecendo auxílio em treinos de respiração. Exemplos como esse mostram que a recusa em entender os múltiplos papeis de instituições culturais na sociedade, em especial em momentos de crise, não é mais do que falta de imaginação e de vontade.
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