Os 100 anos de Fedora Barbieri

por João Luiz Sampaio 19/04/2020

Fedora Barbieri me deu um susto.

Dezessete anos atrás, pouco antes de um concerto em sua homenagem no Theatro São Pedro, eu me aproximei dela com o CD da histórica gravação da Aida, de Verdi, com Maria Callas, Tito Gobbi e ela no papel de Amneris, regência de Tulio Serafin.

Eu queria um autógrafo. Não é algo exatamente profissional da parte de um jornalista, mas, pensei, já a havia entrevistado dias antes, a matéria já tinha sido publicada. E qual a chance de eu estar mais uma vez na frente daquela lenda do canto?

Bom, peguei o disco, daquela série Callas da EMI, de capa preta, e entreguei a ela. Mas seu rosto ficou sério, as sobrancelhas franzidas de um jeito que me lembro até hoje. “Você me traz para autografar um disco com outra cantora na capa? Mas que ofensa.”

O que você faz em uma hora dessas, quando leva um pito de Amneris e Azucena?

Bom, eu devo ter feito uma cara de muito medo. E ela caiu no riso. “Você precisava ter visto sua cara! Foi divertido. Você tem uma caneta? Essa é uma grande gravação, tenho memórias especiais. E Callas...”, ela levantou os braços, “Callas foi realmente grande."

Lembrei da história esses dias, quando o Facebook me avisou que em 2020 completa-se o centenário de Barbieri – o Maggio Musicale Fiorentino, por conta disso, publicou na semana passada em suas redes registros históricos da mezzo soprano gravadas no teatro, entre eles uma Medea, de Cherubini, gravada em 1953 com Callas; e um Dom Sebastiano, de Donizetti, em 1955, regência de Carlo Maria Giulini.

A mezzo soprano Fedora Barbieri

Callas e Barbieri foram parceiras próximas no palco. Na vida, nem tanto, me disse a mezzo naquela entrevista em 2002, quando esteve no Brasil a convite da Cia. Ópera São Paulo para master classes. Não que não se gostassem. Mas Callas vivia em um mundo só seu, contou Barbieri. Talvez por isso tenha sido tão grande. “Mas também porque era uma artista dedicada. Certa vez me contou que ensaiava La Traviata estudando apenas uma página por dia. Veja, ela não se tornou o que foi por acaso.”

A trajetória de Barbieri foi diferente. A começar pelo fato de que nunca desejou ser cantora. Uma vizinha enxerida a ouvia cantarolar em casa e começou a insistir para que seus pais a levassem estudar canto. “Fui ao conservatório forçada. E depois da primeira aula, fugi. Eles me pediram que fizesse vocalises. E eu lá sabia o que era isso?” 

Tempos depois, fugiu de novo. Foi só na terceira vez que acabou ficando – talvez por ter encontrado um professor de temperamento comparável ao seu. “Tive três encontros com ele, que não dizia nada. Ficava em silêncio. Até que me enchi e perguntei qual era o problema. Ele disse que só falaria algo quando eu fosse oficialmente sua aluna.”

A questão do temperamento é curiosa. Como definir, para além da impressão pessoal, o temperamento de uma voz? Mas no caso de Barbieri essa tem sido uma característica ressaltada por dezenas de críticos e fãs. Outra saída, então, é buscar refúgio nas artes plásticas. Há um colorido quente no seu timbre; é uma voz escura, mas ágil – o que fazia dela interessante tanto no drama como na comédia: sua Mrs. Quickly, no Falstaff, de Verdi, é tão memorável quanto sua Santuzza ou Amneris.

O que mais me impressionou nesse retorno a alguns de seus registros, porém, é a cantora diferente que emerge em cada papel que interpreta. Sua Azucena no Trovatore não cai no histrionismo de seu registro de Ulrica, no Baile de Máscaras, por exemplo:

 

 

Já em uma ópera verista, como Cavalleria Rusticana, de Mascagni, ela consegue ser surpreendentemente delicada no Voi lo sapete, em que Santuzza revela a Mama Lucia sua desonra: é aquela velha separação entre força e intensidade.

 

De volta a Verdi, sua Eboli e histórica: pela qualidade vocal, mas também por ter participado da montagem dos anos 1960 no Covent Garden, regida por Carlo Maria Giulini e dirigida por Luchino Visconti, responsável por resgatar o Don Carlo.

 

Mais um Verdi, um Liber Scriptus enérgico no Réquiem, com regência de Toscanini.

 

E no repertório francês surpreende, mesmo cantando em tradução para  italiano, quando canta trechos de Werther ou, agora em francês, a famosa ária de Sansão e Dalila, aqui com pianíssimos totalmente ligados ao sentido dramático da ária:

 

 

E, claro, sua Mrs. Quickly, ao lado de Tito Gobbi como Falstaff na ópera em que Verdi une drama e comédia para dar seu último palpite sobre a condição humana.

 

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