O museu estava fechado. Mas a chuva forte que começou a cair fez com que a gentil senhora abrisse as portas. Estava atarefada. Precisava terminar de arrumar a coleção de figurinos. Mas de onde você é? Ela se agita e com os braços pede que eu a siga. Aqui, esse vestido. Belissimo. Violeta. Ela usou em uma turnê pelo Brasil [Rio de Janeiro, diz a legenda]. Era una donna molto elegante. Il più elegante.
Ela logo desaparece pelo museu. E eu fico um momento entre os figurinos da soprano italiana Renata Tebaldi. Violeta, Tosca, Manon Lescaut, Butterfly, Aida, Madalena. Não são muitos. Mas revelam uma grande carreira, com poucos papeis, mas interpretações marcantes que fizeram dela uma das principais vozes do século XX.
Hoje, dia 1º de fevereiro, completa-se o centenário de nascimento de Tebaldi. A mais elegante. No tom de voz da guardiã do museu que leva seu nome, localizado logo na entrada de Busseto, na região de Parma, na Itália, o subtexto parece claro. Afinal, se há uma mais elegante, há outras menos elegantes. E não há como não pensar na rivalidade que marcou a ópera italiana do período, entre Tebaldi e Maria Callas.
É história que pertence ao terreno da lenda, com especial interesse para nós aqui no Brasil. Uma das versões diz que a rivalidade entre as duas sopranos começou no Rio de Janeiro, em 1951. Ambas cantaram em um concerto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e haviam combinado que não ofereceriam nenhum bis. Mas Tebaldi acabou cantando mais duas árias. E Callas, obviamente, ficou furiosa.
Seja como for, mais fácil é perceber como, nos anos 1950, as duas sopranos e sua suposta rivalidade foram usadas pelo superintendente do Scala de Milão para movimentar os ânimos do público. Antonio Ghiringhelli era homem genioso, mais difícil que seus cantores, e os desentendimentos que teve com Callas e Tebaldi fazia com que ambas se alternassem no palco. Havia, assim, dois Scala, um para cada soprano, um para cada torcida que as defendida com intensidade e violência.
Torcidas que sabem até hoje definir os motivos de suas escolhas. Callas era a intensidade, a paixão, o fogo. Tebaldi, frieza. Na lógica inversa, Tebaldi era a técnica, a elegância, a delicadeza. Callas, o exagero. Mais de sete décadas depois, dá para perceber que a comparação não faz justiça a nenhuma das duas. Foram grandes cantoras. E profundamente diferentes. Na escolha de repertório, no temperamento, na técnica.
Tebaldi nasceu em Pesaro, o pai, violoncelista, a mãe, enfermeira. Viveu a infância com os avós em Parma. Lá estudou piano, mas, a conselho de um professor, começou a se dedicar ao canto. Em meados dos anos 1940, Arturo Toscanini a ouviu. E a convidou para o concerto que marcou a reabertura do Scala após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ocasião importante, que ajudou a despertar interesse em Tebaldi e fazer dela soprano sempre presente nas principais casas de ópera da Itália.
Elsa, no Lohengrin, de Wagner, de quem também cantou diversas vezes a cena final de Isolda, sempre em concertos, e Eva, nos Mestres Cantores. Tatiana, no Eugene Oneguin, de Tchaikovsky. Tudo sempre em italiano. A lista de papeis de seus primeiros anos de carreira inclui ainda óperas de Mozart, como as Bodas de Fígaro, e é curiosa. Pois é formada de papeis que nunca mais interpretaria e que dificilmente associamos a ela.
Seu primeiro triunfo, ainda nos anos 1940, foi como Desdêmona, no Otelo de Verdi, em uma produção em Trieste. No Scala, depois do concerto com Toscanini, cantou Mefistofele, de Boito, e Aida, de Verdi. E a elas sucederam-se papeis como Madama Butterfly, Tosca, Madalena, no Andrea Chenier, Adriana Lecouvreur, Minnie, em La Fanciulla del West. Uma cantora inexpressiva? Ouçam sua versão para "Senza Mamma", de Suor Angelica, de Puccini, em que a personagem reflete sobre a notícia da morte do filho, que acaba de receber: difícil imaginar algo mais bonito e repleto de dor.
Da Itália ela partiu para os Estados Unidos, onde cantou durante diversas temporadas no Metropolitan de Nova York. Rudolf Bing, então diretor do teatro, conta em sua biografia que foram forçados a aceitar diversas exigências da soprano, mesmo a contragosto. Uma delas, produzir uma nova montagem de Adriana Lecouvreur, ópera que Bing considerava um erro. “Mas não havia jeito. Naqueles anos [1962-1963] Tebaldi era o maior sucesso de bilheteria desde Kirsten Flagstad.”
Ao ouvir Tebaldi pela primeira vez, Toscanini a definiu como a “voz de um anjo”. Como soam os anjos é fruto da imaginação de cada um, mas com o tempo a principal marca de Tebaldi foi justamente a beleza do som, o cuidado com a linha de canto, a sobriedade na relação com as palavras. Cada ária era como uma oração.
E essa era provavelmente uma escolha consciente. Em 1950, Tebaldi gravou um disco com a Orchestra della Svizzera Italiana e o maestro Alberto Erede. Na interpretação das árias mais famosas do repertório italiano, havia uma urgência, uma dramaticidade... Não precisa confiar em mim. Para marcar o centenário de Tebaldi, a Decca está lançando uma coletânea com suas primeiras gravações. Ouça "Vissi d’Arte" nas versões do início e do auge da carreira. Se é para entender aquilo que fez da soprano uma das grandes, e como uma voz se desenvolve com o tempo, interessante é comparar Tebaldi com ela mesma.
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