Um gênio musical, um amigo sensível e de simplicidade absoluta

por Luciana Medeiros 03/08/2024

Paris, inverno de 2010. Na sala aconchegante do apartamento da cravista Rosana Lanzelotte, Antonio Meneses ajeita o instrumento, respira e toca a primeira das seis Suítes de Bach para violoncelo solo. Usa havaianas e bermuda. Estávamos ali, João Luiz Sampaio e eu, e o mundo exterior ia lentamente se dissolvendo naquelas notas que voltavam a sair do violoncelo de Antonio. 

Era a última parada europeia na confecção de sua biografia. Passamos duas semanas em Basel, norte da Suíça, conversando com ele na cozinha de casa, tomando renovados bules de chá verde. Fizemos uma esticada até Genebra, de carro, onde prestigiou o recital de um trio de amigos. E finalmente terminamos a conversa em Paris. Era o retorno de Antonio à prática diária, depois da parada forçada por uma cirurgia que extraiu um pequeno tumor benigno do pulso esquerdo.

Antonio, que nos deixou nesse sábado de agosto, vinte dias antes de completar 67 anos, era (e lá vem a platitude) uma pessoa multifacetada, como todos nós. Mas, como pouquíssimos de nós, tinha também a dimensão dos gênios da arte. Ele certamente tinha consciência plena de sua capacidade absurda de compreender a música e transmiti-la em seu viés divino. A diferença é que, ao contrário de muitos artistas geniais, essa dimensão não contaminava todas as outras. Antonio era de uma simplicidade absoluta. Gostava da vida reservada, discreta, do cotidiano feito de pequenos prazeres como cozinhar – era excelente cozinheiro – e praticar. Sua casa era assim, confortável e clean.

Costumava dizer que, pela precocidade de seu deslocamento para a Europa, para estudar na Alemanha – sozinho, sem estrutura, às vezes passando frio e fome –, havia perdido algo da brasilidade, da espontaneidade, mas não: era capaz de contar uma piada como qualquer um de nós no botequim, e suas histórias eram deliciosas – essas, que tentamos levar de maneira saborosa ao livro publicado pela editora Algol em 2011. Mesmo a convivência com outros deuses da música, como Karajan e Menahem Pressler, ele descrevia com cores e sabores intensos. 

Era um leitor dedicado, como atesta sua inteligência musical (sim, é preciso pensar e conhecer de tudo para um desempenho como o dele); generoso, não deixava de atender aos amigos, a se dedicar a causas mais amplas do que simplesmente sua performance. Uma dessas causas era a ampliação do repertório do cello, encomendando obras a compositores, a maioria brasileiros. Outra causa, a colaboração com a educação musical em projetos sociais como a da amiga Fiorella Solares, à frente da Ação Social pela Música no Brasil. Não se negava a explicar, conversar, a atender a imprensa. 

Era um homem alto, grande, elegante, vibrante, cheio de energia, e capaz de uma concentração espantosa em torno do instrumento. Tinha as mais belas mãos que já vi. Ele podia passar muito tempo descrevendo a sensação do melhor sushi que já comera, ou falar de maneira clara, objetiva e nada piegas da luta pela profissão quando jovem, nos estudos e nos concursos, como em algumas das histórias que ele conta no livro: a falta de roupa para se apresentar em Munique, ou a final do Tchaikovsky em 1982 (primeira vez que o concurso russo se abria para o violoncelo), em que sua medalha de ouro teve que ser aprovada pessoalmente por Nikita Kruschev. Afinal, que absurdo era esse, não era um russo o vencedor? Um brasileiro??? Também brincava com uma foto da gravação de Don Quixote com a Filarmônica de Berlim – “olha aí o Karajan a meus pés!”, apontado a imagem do regente sentado no tabladinho do solista nos ensaios.

Antonio Meneses se foi nesse sábado de agosto, para incredulidade e tristeza imensas de todos os que o ouviram produzir sua mágica. Para mim, além do biografado, Antonio era um amigo. E um símbolo importante de vida. Em 2010, estava em remissão de um linfoma, depois do tratamento quimioterápico, e ali começava minha carreira literária, com sua biografia. Vida multiplicada pelo privilégio de conviver com esse gênio em tantas dimensões. Que ele, com sua imagem, sua música, seu bom humor, nos ilumine para sempre, é o que peço. E que saibamos homenageá-lo e honrá-lo.

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João Luiz Sampaio e Luciana Medeiros com Antonio Meneses em Basel, durante a preparação da biografia 'Arquitetura da Emoção' [Acervo Pessoal]
João Luiz Sampaio e Luciana Medeiros com Antonio Meneses em Basel, durante a preparação da biografia 'Arquitetura da Emoção' [Acervo Pessoal]

 

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Envolvido em diversos meios musicais que sou, casa vez mais fico admirado com a quantidade e qualidade de todos os músicos e artistas do Brasil. Colegas meus cantores estão espalhados pelo mundo todo, todos fazendo bonito e dignificando o nome de nossa nação. Antônio Menezes foi um desses. E que pena não tê-lo conhecido pessoalmente.

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