Dizem que o crítico de jazz norte-americano Martin Williams (1924-1992) "evitava as histórias íntimas de músicos exibidos, supostamente mitológicos, e optava por uma análise formal, mas acessível, da música". Essa objetividade bem-informada e transparente aplica-se, sem tirar nem por, ao principal seguidor de Williams no Brasil: Zuza Homem de Mello, que acaba de nos deixar, aos 87 anos de idade.
Não que ele não curtisse uma anedota saborosa – e era rico nelas, ao longo de décadas de convívio íntimo com as maiores estrelas da MPB e do jazz. Porém, fosse em seus programas de rádio e TV, aulas ou livros para a Editora 34 – como A Canção no Tempo (a quatro mãos com Jairo Severiano), A Era dos Festivais, Copacabana e a coletânea Música nas Veias – Memórias e Ensaios –, a ligeireza das narrativas pessoais era balanceada com análises sólidas sem serem herméticas, e didáticas sem recaírem na puerilidade.
Contrabaixista de origem (foi pupilo de ninguém menos do que Ray Brown), formado na prestigiosa Juilliard School, de Nova York, Zuza exalava um cosmopolitismo que servia de saudável contraponto ao nacionalismo exacerbado de José Ramos Tinhorão (cinco anos mais velho). Com funções múltiplas de técnico de som, produtor e diretor musical, atuou ativamente no que de melhor houve nos anos dourados da música popular brasileira – e sua posição central nesses eventos fez dele um observador privilegiado e um perspicaz pensador da MPB.
Zuza tinha não apenas um dos ouvidos mais finos que pude conhecer, como um amor ilimitado por música de concerto e ópera
Nas décadas de 1970 e 1980, na Rádio Jovem Pan, Zuza foi parte da paisagem sonora de minha infância e adolescência, ao lado da frenética exortação ao trabalho da Sinfonia Paulistana, de Billy Blanco, e das épicas narrações futebolísticas de José Silvério. O Programa do Zuza esteve no ar durante praticamente toda minha vida de aluno do Colégio Dante Alighieri, entre 1977 e 1988, e foi uma espécie de cartilha (lúdica e divertida) para os primeiros passos de uma escuta crítica.
Fui conhecê-lo pessoalmente muito tempo depois, nos corredores da Casa do Saber, onde ambos dávamos aulas, e a grande surpresa foi descobrir que Zuza tinha não apenas um dos ouvidos mais finos que pude conhecer, como um amor ilimitado por música de concerto e ópera – onde seu conhecimento era também espantoso. Sempre gentil e elegante, era um interlocutor dos mais prazerosos nos intervalos da Sala São Paulo, Teatro Municipal e Teatro São Pedro. Também se fazia ver bastante no Complexo Cultural Baía dos Vermelhos, em Ilhabela, cuja programação de música popular tinha sua influência. Comigo, ele só queria falar do repertório “erudito” – com eventuais escapadas para as agruras do nosso São Paulo Futebol Clube.
Nossa última conversa foi no JazzB, no show de lançamento de Na Esquina do Clube com o Sol na Cabeça, disco de André Mehmari dedicado ao repertório do Clube da Esquina. Era um evento de música “popular”; contudo, convidado a fazer um breve pronunciamento antes da apresentação, Zuza quis falar de... Monteverdi. Afinal, o mestre italiano do Barroco dá nome ao estúdio de Mehmari, e Zuza desejava que aquele público habituado à melhor música popular descobrisse também os encantos desse outro repertório.
Sua extrema polidez, refinamento e delicadeza estavam em contraste profundo com um Brasil cada vez mais brutal
Não sei se conheci alguém a quem se aplicasse melhor a palavra gentleman. Sua extrema polidez, refinamento e delicadeza estavam em contraste profundo com um Brasil cada vez mais brutal – assim como sua erudição não combinava com um mundo de fake news, lorotas e invencionices. Ele deixa, como legado, um livro ainda a ser lançado sobre João Gilberto – do qual já gostei, mesmo sem ter lido uma linha. Dos depoimentos que vi nas redes sociais, fico com a luminosa síntese do escritor Fernando Morais: “O Brasil perdeu um dos nossos maiores musicólogos e eu perdi um amigo. Morreu de infarto ontem em São Paulo, aos 87 anos, o grande Zuza Homem de Mello. Nos últimos 50 anos pode-se ver a mão de Zuza em quase todos os movimentos importantes da música popular brasileira, da Bossa Nova ao Tropicalismo. Ao lado de Tom Jobim, Arrigo Barnabé e Eduardo Gudim, Zuza foi um dos esteios da minha breve passagem pela Secretaria da Cultura do Estado de SP. Quem cavoucar vai encontrar as digitais dele na criação da Universidade Livre de Música, da Orquestra Jazz Sinfônica e em tantos outros projetos musicais nas Oficinas Culturais. Gentil, polido, bem humorado. Um cavalheiro. Coração apertadinho com sua morte”.
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