Consciência negra

por Nelson Rubens Kunze 16/11/2021

Maestra Alba Bomfim regeu Osusp em concerto que chamou a atenção para o racismo 

Na minha estatística pessoal, devo ter assistido, em uma conta grosseira, a mais de 2 mil concertos. A esmagadora maioria regida por homens. E homens brancos. Assisti a alguns – não muitos! –, regidos por homens negros, mas não me recordo de alguma vez ter assistido a um concerto regido por uma mulher negra. Pois na sexta-feira passada, 12 de novembro de 2021, foi o dia: a maestra carioca Alba Bomfim dirigiu a Orquestra Sinfônica da USP no Anfiteatro Camargo Guarnieri!

Antes do concerto, o diretor artístico a Osusp, o fagotista Fabio Cury, fez uma breve fala, chamando a atenção ao fato: “Esse concerto celebra um tema de extrema relevância, a consciência negra. Quando consideramos que mais de metade da população brasileira é de negros e pardos e a desigualdade racial ainda nos assola de maneira irrefutável, devemos lutar para que essa seja uma luta constante, não circunscrita à efeméride do próximo dia 20 [Dia da Consciência Negra]”. E emendou: “Não basta, pois, sermos individualmente não racistas, é preciso uma ação intencional antirracista para acelerar as mudanças que são evidentemente necessárias e urgentes”.

É verdade. Ano passado, quando George Floyd foi assassinado nos Estados Unidos, a Filarmônica de Nova York emitiu um comunicado em que afirmava: “Nunca é tarde demais para fazer a coisa certa”, reconhecendo que tinha muito a aprender sobre o racismo nos Estados Unidos e que a partir de então mudaria procedimentos e posturas para contribuir ativamente para a mudança dessa realidade. “Sabemos que há muito trabalho a fazer, mas estamos comprometidos com os mais altos ideais de justiça racial, diversidade e inclusão”, dizia o documento. Alguns meses mais tarde, o Metropolitan Opera House, também de Nova York, anunciou uma nova diretoria voltada exclusivamente para “promover a diversidade”.

Também aqui no Brasil há importantes ações sendo desenvolvidas para enfrentar essa situação, como o Ubuntu. Criado pelos artistas Edna D’Oliveira, Mere Oliveira, Michel de Souza e Iberê Carvalho, o grupo realiza desde o ano passado festivais e eventos voltados a negros, buscando dar subsídios a esse grupo para que consiga abrir espaço dentro de nossa estrutura institucionalmente racista.

Voltando ao concerto da Osusp, quem vê o currículo da maestra Alba Bomfim reconhece que não foi por falta de competências que ela nunca tenha se apresentado na cidade antes. Ela é licenciada em música pela Universidade de Brasília (1995), bacharel em regência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003), mestre em música pela Universidade de Brasília (2009) e finalmente doutora em regência pela Universidade de Aveiro, em Portugal (2020). Em sua formação, foi orientada por maestros como Marin Alsop, Kurt Masur, Harold Farberman, Fabio Mechetti e Ernani Aguiar, entre outros. Em 2017, Alba foi uma das participantes do concorridíssimo programa internacional de residência artística para maestras The Hart Institute na Ópera de Dallas, nos Estados Unidos. Alba Bomfim já trabalhou com orquestras no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, dentre as quais a BBC Concert Orchestra e a Chamber Orchestra of New York. Atualmente ela é professora de regência na Universidade Federal do Piauí, onde também é curadora da Orquestra Filarmônica Virtual do Meio-Norte. 

E Alba Bomfim correspondeu ao seu destacado currículo. A maestra tem gestos largos e vigorosos, controla a orquestra e transmite musicalidade com muita naturalidade. 

O repertório, exclusivamente brasileiro, começou com obras de dois dos maiores gênios da música brasileira, os dois de descendência negra: a Abertura em ré, de Padre José Maurício, e a Sonata para cordas “Burrico de pau”, de Antonio Carlos Gomes.

Se essas duas obras são bastante conhecidas, as duas que seguiram foram estreias mundiais. 

A primeira foi a Suíte franco-brasileira para flauta e orquestra de Renan Mendes. Flauta solo da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo, Renan é formado pelo Conservatório de Paris e é também compositor, especialmente de músicas para o seu instrumento. A Suíte franco-brasileira é formada por diversos movimentos de ritmos variados, alguns que lembram valsas brasileiras, outros chorinhos, incluindo cadências da flauta. O solista foi Lucas Martins, vencedor do I Concurso de flauta Jean-Noël Saghaard e que atualmente se aperfeiçoa na Suíça.

A obra que encerrou o concerto foi comissionada pela Osusp ao compositor João Rocha, doutor em regência orquestral pela Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, onde reside. João escreveu a Sinfonia Concertante para quinteto de sopros e orquestra de cordas. Com uma linguagem criativa, algumas vezes citando melodias populares ou compositores brasileiros, João criou uma bela obra com inventivas tramas musicais. 

João Rocha é negro, como Alba. Segunda a maestra, esse acontecimento – um autor negro sendo estreado por uma maestra negra – muito provavelmente é inédito na história do Brasil.

Oxalá este concerto da Osusp, que contou na plateia com a presença ilustre da secretária de cultura da Prefeitura de São Paulo, Aline Torres – também negra –, seja indício de que as coisas estão mudando. 

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Alba Bomfim rege Osusp no Anfiteatro Camargo Guarnieri (divulgação, Rawziski Registros Musicais)
Alba Bomfim rege Osusp no Anfiteatro Camargo Guarnieri (divulgação, Rawziski Registros Musicais)

 

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