Cristian Budu em Barão Geraldo

por Jorge Coli 21/10/2019

Moro em um distrito perto de Campinas, chamado Barão Geraldo. É um lugar agradável. Minha casa fica bem perto da Unicamp, onde trabalho. Mas, apesar da Universidade Estadual, e da PUC, que lhe é contígua, não se trata exatamente de um centro expressivo de acontecimentos culturais. Tem vários barezinhos simpáticos, porém.

Foi assim que, na tarde do último sábado, dia 19, tive uma surpresa. Cristian Budu, jovem e grande pianista, postou no Facebook que daria um recital às 20 horas, numa sala de que eu nunca ouvira falar, em Barão Geraldo.
Procurei no Google, pus no GPS, e descobri que esse lugar fica a exatos 10 minutos de onde moro. O nome é Sala Watari.

Como não tinha ingressos, quis chegar cedo. O lugar é bonito, uma chácara com construções muito integradas à natureza. Jardim lindo.

Cristian Budu ensaiava, e um público já bem denso, sentara-se para ouvir.

Que excelente acústica! O forro de madeira acompanha as duas águas do longo auditório. Clareza, sem secura, e sem reverberações excessivas.

O pianista Cristian Budu ensaia antes do recital em Campinas, já com o público na sala [Revista CONCERTO/Jorge Coli]
O pianista Cristian Budu ensaia antes do recital em Campinas, já com o público na sala [Revista CONCERTO/Jorge Coli]

Soube depois, para meu vexame, que a sala já programara uma série de recitais no ano passado, e que a apresentação de Cristian Budu era o antepenúltimo deste ano.

O dono da sala e promotor dos recitais, sr. Tohoru Watari, é um médico que se tornou empresário. Prefere investir em arte do que em Rolex ou carrões. 

Os programas anuais são estabelecidos por dois professores do departamento de música da Unicamp, Mauricy Martin e Fernando Hashimoto.

Tudo foi perfeito. O tamanho da sala, nem grande, nem pequeno, o aconchego caloroso, a atenção do público.

Cristian Budu é o contrário do artista com echarpe de seda e olhar perdido no infinito. Sugere antes um jogador de futebol do que um pianista virtuoso. Adora falar das obras, e faz isso com afeto despretensioso. Naquele ambiente, a troca de energias simpáticas entre ele e o público ficaram evidentes.

Desde pelo menos Arthur Napoleão e Luigi Chiaffarelli que o Brasil apresenta uma sequência de grandes pianistas, dos quais muitos se projetaram para além das fronteiras, fazendo parte, em definitivo, da música no seu sentido universal. Cristian Budu é o mais recente exemplo dessa série ilustre.

Sente-se, de imediato, a intensidade de sua concentração, seu modo de investir na forma com uma excepcional atenção auditiva, um foco que o leva a entregar-se por completo, fazendo os sons jorrarem com energia fantástica que nunca sai do controle. Foi engraçado lembrar, ao ouvir sua Kreisleriana, do que ele dissera na apresentação: “é uma obra longa. Espero que ninguém durma. Mas se dormirem, não tem importância, faz parte”.

Dormir? Como? Tudo é dinâmico, palpitante, surpreendente. Sente-se sua apropriação da partitura, original e reveladora. Cristian Budu demonstra o que falta a tantos pianistas, mesmo de nível alto, mesmo de técnica transcendente: personalidade. Sua interpretação é firme, mas nutrida por energias nos andamentos, nos rubatos, que percorrem as obras como correntes elétricas. Mais ainda, ele parece conferir tanta importância ao som emitido quanto ao silêncio que o envolve. Assim, a fúria enérgica nunca destrói o detalhe. E tudo isso com uma simplicidade, uma naturalidade de ser, sem qualquer afetação, sem qualquer pose!

A primeira parte do concerto foi consagrada a Schumann: um luminoso Arabeske, no qual o pianista se entregou ao prazer de desenhar as esplêndidas volutas da partitura com um profundo sentido melódico. Depois, a Kreisleriana, que ele fez tão arrebatada e tão colorida.

Passado o intervalo, veio Beethoven. Três Bagatelles, leves, elegantes, mas “carnais” por assim dizer, ou seja, sem que a sólida materialidade sonora se desvanecesse.

E o que dizer de sua interpretação da Appassionata, que concluía o programa? Os contrastes dinâmicos, as acelerações e desacelerações, indo no exato sentido do discurso beethoveniano, feito de interrogações, respostas e expectativas... Foi mais do que admirável, no que a palavra admirável tem de distância entre o sujeito que admira e o objeto admirado. Porque todos, ali, naquela sala, unimo-nos à prodigiosa expressão sonora.
Cristian Budu foi generoso nos seus bis: um Prelúdio de Chopin, um chorinho de Nazaré, uma Valsa de Esquina de Mignone. 

Ao sair na noite calma, no jardim tão perfumado, lembrei de uns versinhos citados por Cernicchiaro. Foram escritos por um jornalista quando o grande Thalberg deu um recital no Rio de Janeiro, ano de 1855:

               “E agora afirmo sem medo,
               Pelo que de ouvir acabo
               Que, ou tem no corpo o diabo,
               Ou um anjo em cada dedo.” 

 

Cristian Budu se apresenta nos próximos dias 24, 25 e 26 com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e o maestro Neil Thomson na Sala São Paulo; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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