Convivo, nesta sexta-feira, dia 14, com entrevistas de duas grandes figuras públicas do nosso tempo, que têm em comum a idade: o primeiro, o pianista austríaco Alfred Brendel, completou 90 anos em 5 de janeiro passado; o segundo, Fernando Henrique Cardoso, vai completar suas nove décadas de vida em 18 de junho próximo. Em entrevistas publicadas hoje, eles mostram estados de espírito opostos.
O pianista, um dos maiores do nosso tempo, reclama dos absurdos que constata na interpretação de Beethoven hoje em dia. Diz que as gerações mais jovens de pianistas se esqueceram da frase de Beethoven de que a música vem do coração e segue novamente para o coração (ele a cita em alemão na entrevista ao site inglês Presto Music). Sinaliza que “os novos dogmas da performance barroca”, isto é, historicamente informada, “transbordaram para o modo como a música de Haydn e Mozart é ultimamente tratada”. E toca fogo no parquinho, ao afirmar que “me parece grotesco que a música de câmara destes dois mestres seja às vezes tratada de forma pseudobarroca – sem vibrato, grupos de duas notas acentuadas e o staccato mais curto – , enquanto contemporâneos deles mais jovens, como Beethoven, podem soar ‘modernos’.”
Ou seja, sobra cerebralismo, mas falta carne, alma. Brendel diz que se toca Beethoven em andamentos cada vez mais rápidos e ao mesmo tempo soando cada vez mais frios, gelados. Cadê o “dolce” ou "espressivo" de Beethoven?, pergunta-se, decepcionado.
Dá ainda uma derradeira estocada nos “loucos pelo urtext” [urtext é a palavra alemã que designa a partitura editada que respeita literalmente as indicações originais do compositor]. Diz Brendel: “Sou um grande admirador da notação de Beethoven em geral, com exceção de algumas de suas indicações de metrônomo nas sinfonias e na música de câmara que, por boas razões, não foram seguidas pela maioria dos músicos mais velhos. Em suas obras para piano, felizmente não há indicações de metrônomo, com exceção da Hammerklavier [a sonata opus 106], que traz algumas indicações de metrônomo malucas, corretamente ignoradas por quase todos os pianistas do passado. Mas agora elas são freneticamente seguidas por muitos músicos mais jovens”.
Estas palavras, sábias, muito sábias, podem soar como coisa de velho para as gerações atuais. Mas, cá entre nós, cabem como uma luva em dezenas de interpretações alopradamente aceleradas das sonatas de Beethoven. “Não toco como quem participa de uma corrida de 100 metros”: a frase não é exatamente esta, mas o sentido é este, na declaração do pianista chileno Claudio Arrau, outro especialista em Beethoven que se recusava a participar da olimpíada de velocidade reinante já em suas décadas finais de vida. Ele morreu em 1991. Quem se der ao trabalho de ouvir suas leituras intensas, hoje criticadas por seus tempos lentos demais, de seis sonatas lançadas numa caixa com suas derradeiras gravações para a Philips (entre 1988 e 1991), vai perceber com clareza a diferença entre tocar corretamente esta música que vem do coração e vai para o coração com a hoje reinante, de competição velocista desenfreada.
É disso que precisamos. De novos Brendel e Arrau, capazes não de imitá-los rasteiramente, mas de reinventar a beleza excepcional destas 32 sonatas que, com justiça, constituem o maior monumento pianístico da história da música ocidental. Afinal, esta é a graça de se ouvir pela milionésima vez uma sonata de Haydn, Mozart e Beethoven.
Já FHC respira um inexplicável otimismo. Diz que, haja o que houver, precisamos cultivar a plantinha esquálida da crença em dias melhores: “É importante sempre manter a expectativa de um futuro melhor. Mesmo que ele não venha, você terá a expectativa”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo. Com os mortos pela Covid-19 beirando os 450 mil? Com a ausência criminosa das vacinas, a única saída, como os infectologistas não se cansam de repetir? Com a destruição deliberada da cultura e das artes no país? Sério que ainda por cima precisamos ser otimistas?
Não consigo. Juro.
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