A verticalidade na transmissão de informação e do conhecimento explodiu há algum tempo, impulsionada principalmente pelas redes sociais. Como levar música e ópera para o universo infantil?
Todo ano, em outubro, as orquestras e instituições da música e da ópera oferecem ao público Pedro e o Lobo, de Prokofiev, O carnaval dos animais, de Saint-Saëns, ou adaptam obras da literatura e da música popular para a performance sinfônica, no embalo do “mês das crianças”. São ótimos programas, não resta dúvida. Mas, em tempos de mudanças radicais nas linguagens formais e no acesso a ferramentas de comunicação e interação, será que não é hora de repensar as maneiras de apresentar a música clássica e a ópera às crianças? Essa é, aqui, uma questão mesmo, não uma premissa. Vamos pensar juntos.
Fato: a verticalidade na transmissão de informação e do conhecimento explodiu há algum tempo, impulsionada principalmente pelas redes sociais. O paradigma da interatividade total (ou a ilusão disso) sacode a ideia da escuta passiva e da concentração. Seria interessante, se essa interatividade não fosse tão absoluta quanto rasa. Como se estruturou, no interesse das plataformas, estimula (principalmente como tática de expansão e disseminação) a ideia de des-hierarquização e do consumo passivo permanente. Ilusoriamente: um post do presidente da república, de um cientista ou de um veículo tradicional de imprensa é transmitido e consumido no mesmo formato e no mesmo patamar de um post de qualquer pessoa.
Outro fato: os algoritmos estão programados para nos manter presos na bolha de interesses pré-manifestados. Há uma ideia de que familiaridade = consumo, seja de vídeos de gatinhos ou de ódio ao político tal. Clicou? Deu like? Imediatamente seu feed é inundado por gatinhos (ou discursos de ódio). Exaustivamente. Onipresentemente.
Piaget escreveu que o avanço cognitivo se dá através do desequilíbrio, do desafio, do confronto com elementos novos. Assim, como avaliar os programas e projetos do clássico e do lírico em suas versões introdutórias?
Mas vamos voltar à apresentação da música e da ópera para as crianças em tempos de hipnose das telinhas. Fui buscar Jean Piaget para entender as fases de desenvolvimento infantil e me deparei com o seguinte conceito: o avanço cognitivo se dá através do desequilíbrio, do desafio, do confronto com elementos novos. Assim, como avaliar os programas e projetos do clássico e do lírico em suas versões introdutórias?
Conversei com diversos profissionais da área que apresentaram suas visões para uma geração que já nasceu no TikTok. Em cartaz até dia 20 de outubro no Theatro São Pedro de São Paulo, a ópera Cinderela, de Pauline Viardot, tem montagem assinada por Julianna Santos. O conto de Perrault é transportado para a cena em sua versão clássica. “Eu acho que temos de remar na direção contrária”, diz ela. “Na ópera, tenho tendência a me distanciar da tecnologia e apostar no encontro, em outro tipo de relação.” Julianna fala na beleza de “se comover” – e comover é justamente “mover junto”, do latim commovĕre. “Montagens que apostam na estética da tecnologia não me comovem. E não foi o caminho que eu busquei.”
Flavia Furtado, diretora executiva do Festival Amazonas e hoje uma das mais importantes vozes da ópera no país, acha que, em relação a novas gerações, “a fórmula não mudou tanto”. “Eles têm menos poder de concentração, talvez, mas temos que levar aos concertos e ter programações adequadas na temática, no horário etc”, pondera. Em Manaus, conta, já se fixou na programação a performance do Pequeno Teatro do Mundo, de fantoches, montando uma ópera a casa ano. “Fazemos um ambiente acolhedor, com almofadas no chão, perto do palco, para esse primeiro contato da criança com a ópera”. Mas vê, sim, que “essa geração funciona diferente de nós. E estamos aprendendo a lidar com eles, no mundo todo”.
O diretor artístico do Theatro Municipal do Rio, Eric Herrero, ressalta a importância da programação específica. “Temos um Projeto Escola ligado a balés e óperas de toda a temporada, e a alguns concertos, que funciona muito bem, com cartilhas para professor e para alunos sobre os espetáculos que assistirão. Milhares de crianças vão ao teatro já conhecendo o que vão ver.”
Herrero em pessoa roteirizou e dirigiu alguns concertos didáticos. Mas lembra também que as orquestras sociais “ajudam a formar cidadãos, trazendo responsabilidade, escuta aberta, quebra de paradigmas”. E ressalta: “Como o exemplo arrasta, esses jovens são vitrines nas quais mais crianças admiram a possibilidade de um futuro.” Ele próprio tem uma participação constante no projeto criado por Fiorella Solares, Ação Social pela Música no Brasil. “Tenho visitado os núcleos da ASM, cantando ao lado de jovens oriundos de várias comunidades, num projeto que criei chamado A Música Renova. E essas crianças e jovens têm a vida transformada. A cultura muda as realidades. Não tenho dúvidas.”
Concertos didáticos, por exemplo, são necessários e complementares, mas experiências passivas com a música não têm o mesmo poder do que efetivamente cantar ou tocar, diz André Cardoso
Orquestras sociais também são parte da análise de André Cardoso, professor da Escola de Música da UFRJ e coordenador do Sistema Nacional de Orquestras Sociais, o SINOS, parceria da universidade com a Funarte – mas não apenas as sociais. Ele crava seu diagnóstico: “A educação musical não pode ser meramente apreciativa, mas uma ferramenta prática para o desenvolvimento cognitivo das crianças. Concertos didáticos, por exemplo, são necessários e complementares, mas experiências passivas com a música não têm o mesmo poder do que efetivamente cantar ou tocar. Levar a criança a um concerto após iniciá-la na prática musical terá um efeito muito mais impactante. Educação musical prática é a solução.”
Ele sabe bem o que diz: o SINOS vem mapeando e acompanhando milhares de iniciativas pelo Brasil que colocam a música como educação, formação e, muitas vezes, futuro profissional. “A solução está onde sempre esteve: em casa e na escola. Colocá-las para cantar em coro e dar a elas um instrumento musical para aprenderem será muito mais eficaz do que qualquer outro meio.”
De volta a Piaget, então, que estudou o desenvolvimento cognitivo; independentemente da aplicação de suas teorias educacionais, aqui o que nos importa é a ideia de que aprender a usufruir não se dá pela imposição. Disse o suíço genial: “O ser humano é ativo na construção de seu conhecimento e não uma massa ‘disforme’ a ser moldada pelo professor”. Ou anestesiada pelo TikTok. Que haja, então, além dos espetáculos, música nas escolas, muitas bandas de música, corais e orquestras para as crianças. E vocês, o que acham?
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Comentários
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Gostei do que André Cardoso…
Gostei do que André Cardoso disse: “A educação musical não pode ser meramente apreciativa, mas uma ferramenta prática… ” É assim que funciona, inclusive para apreciar um concerto. Uma criança aprender um instrumento terá oportunidade de fazer música em um grupo ou uma orquestra infantil- juvenil é uma experiência incrível, que transforma mesmo.