Ninguém é apolítico

por João Marcos Coelho 01/04/2022

Duas musicólogas norte-americanas – Kira Thurman e Emily Richmond Pollock – debateram, na revista The New Yorker, as razões pelas quais de repente a música e os músicos clássicos, em geral acantonados num nicho específico, foram catapultados para o primeiro plano nas mídias em todo o planeta.

O motivo: suas reações – ou mesmo ausência de reações e mutismo escancarado – à invasão da Ucrânia pela Rússia, uma guerra sangrenta que vem destruindo monumentos, teatros e museus em Kiev (ironicamente a primeira capital russa séculos atrás) e vidas, muitas vidas.

Valery Gergiev e Anna Netrebko, duas estrelas de primeira grandeza no mundo clássico, foram cancelados no chamado Ocidente. Do outro lado, músicos como a violinista Lisa Batiashvili dedicaram concertos como o dela, na semana passada com a Filarmônica de Berlim, “às vítimas dos russos na guerra da Ucrânia”.

Vale muito a pena ler com atenção o debate entre Kira e Emely, pontuado pelas perguntas certeiras de Isaac Chotines. Bem, depois de ambas concordarem que a postura apolítica é impossível, o jornalista lhes fez uma pergunta que nos toca a todos os nascidos ou habitantes de países não-europeus: “A música clássica geralmente viaja internacionalmente de uma maneira diferente da de um romance ou filme. Parece mais com o atletismo no sentido de que as pessoas realmente vão e realizam coisas, certo? Eu me pergunto como isso muda a recepção e se isso explica o impacto descomunal que esta crise atual está tendo na música clássica?”.

Transcrevo parte da resposta de Kira Thurman: “Há um livro realmente ótimo do musicólogo Christopher Small, Musicking. Toca exatamente na sua questão. Seu grande argumento é que não existe música, não existe uma obra musical ou um objeto musical. A única coisa que existe são os artistas que a fazem. Assim, a música é sempre inteiramente dependente dos intérpretes para executá-la. Mas Small vai ainda mais longe e argumenta que a música é inteiramente performática. Não existe um trabalho musical objetivo. É apenas o que o intérprete faz”.

As superstars da música clássica internacional costumam voar em rotas bem acima da política, apoiadas num idealismo vago o suficiente para lhes assegurar o poder musical

A ideia de Small é sedutora. Talvez ele tenha ido longe demais ao limitar a música ao ato musical do intérprete. Mas o que me interessa ainda mais é a vida musical nos países não-europeus (ou russos, no caso da música clássica, já que por lá os gênios se multiplicam com espantosa celeridade). Os grandes momentos em países como os Estados Unidos e o Brasil, pra ficar só nos nossos exemplos, são sempre as vindas de grandes estrelas internacionais para um, dois ou três concertos.

A música – sobretudo a clássica, e também o jazz – foi muito usada como arma de propaganda durante a Guerra Fria. Do lado norte-americano, Louis Armstrong e Dave Brubeck faturaram alto pra viajar pelo mundo em turnês escolhidas a dedo pela CIA. Do lado soviético, a máquina de produzir virtuoses parecia infinita. 

Será que, em pleno século XXI, vamos reviver este Fla-Flu no domínio clássico? Espero, torço para que isso não aconteça.

Como se vê, a música clássica nada tem de etérea, celestial, “spa” neutro para as almas cansadas.

As superstars da música clássica internacional costumam voar em rotas bem acima da política, apoiadas num idealismo vago o suficiente para lhes assegurar o poder musical, qualquer que seja o poderoso de plantão. Ao mesmo tempo, respeito quem toma partido, gostemos ou não. As coisas ficam mais claras, o jogo fica mais limpo. 

Agora, o que não dá mesmo é ficar em cima do muro, dizer-se “apolítico”.

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A musicóloga norte-americana Kira Thurman [Divulgação]
A musicóloga norte-americana Kira Thurman [Divulgação]

 

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