A notícia agora é oficial: o Theatro São Pedro não será mais, a partir da temporada 2020, um espaço dedicado exclusivamente à ópera e à música de concerto. A temporada lírica foi reduzida e agora o teatro passa a produzir também musicais. Mas não só.
O projeto “Novo Theatro São Pedro”, informa a Santa Marcelina Cultura, responsável pela gestão do espaço, prevê ocupações artísticas em 365 dias por ano, “abrindo suas portas para todos os públicos, com uma programação mais ativa e variada, abrangendo dança, teatro, circo, moda, gastronomia, exposições, instalações, palestras e muito mais”. Isso porque, segundo Sérgio Sá Leitão, secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, e Paulo Zuben, diretor artístico e pedagógico da Santa Marcelina, o “São Pedro deve ser um espaço para todos”.
Não há grandes detalhes a respeito de como todas essas áreas estarão representadas na programação. Mas há um dado já concreto. Foi mantido o número de quatro espetáculos; serão, no entanto, segundo o governo, dois musicais e duas óperas.
É bem provável que uma disputa entre musicais e ópera, ou melhor, entre seus profissionais, logo comece. E é também provável que seja reduzida à fórmula “ópera é melhor que musical” versus “musical é mais popular que a ópera e não um espetáculo de elite”. Quem quiser seguir por esse caminho, divirta-se. Só coloco aqui duas ideias soltas: West Side Story, de Leonard Bernstein, que abre a programação, é uma das peças mais emblemáticas do repertório do século XX; a ópera hoje tem um público mais diversificado do que o senso comum sugere e assistir a uma récita do Rigoletto, de Verdi, em qualquer teatro do Brasil custa menos do que um o valor de um ingresso para O fantasma da ópera em sua produção paulistana.
Mas, nessa mudança de vocação do São Pedro, a questão me parece outra.
Desde que a nova instrução normativa da Lei Rouanet elegeu os musicais como vilões, restringindo os valores de patrocínio que o gênero pode captar, os secretários de cultura Estadual e Municipal de São Paulo saíram em defesa da área. Com razão. É uma indústria grande, que movimenta, segundo matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, cerca de R$ 1 bilhão, gerando empregos diretos e indiretos. Houve uma tentativa de negociação e debate com o governo federal, que não deu resultados, seja porque Brasília parece pouco afeita a discutir cultura de maneira adulta, seja porque, convenhamos, politicamente há entre as partes mais laços do que se gostaria de admitir.
Nesse cenário, a decisão da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo de tornar os musicais uma área de interesse público, no contexto da ampliação do escopo de atuação do Theatro São Pedro, não deixa de ser uma tomada de posição. Só que ela é feita não por meio de um acréscimo no investimento e, sim, pela redução no apoio a outra área também importante (como os musicais), com um ecossistema próprio, grandes profissionais, capacidade de gerar empregos, renda, e assim por diante: a ópera. (Para quem quiser saber mais sobre o assunto, a diretora executiva do Festival Amazonas de Ópera, Flavia Furtado, tem dados interessantes.)
Nem todo o malabarismo do discurso oficial vai esconder o fato de que o gênero, no São Pedro, perdeu espaço e receberá menos recursos do que antes.
Não nos deixemos enganar: o bolo, que já se mostrava pequeno (o orçamento da Cultura caiu pela metade desde 2010 e, no início do ano, quase sofreu redução de mais 23%), agora será dividido por mais áreas. A secretaria poderia naturalmente abrir uma nova frente de investimentos. Mas não é isso que está fazendo. E, para a ópera, o golpe é claro. E duro. Nem todo o malabarismo do discurso oficial vai esconder o fato de que o gênero, no São Pedro, perdeu espaço e receberá menos recursos do que antes.
O projeto dedicado a óperas barrocas? Sumiu. O Projeto Janácek? Foi-se. A encomenda de novas obras? Desapareceu. O projeto de formação de novos artistas? Não sei se sumiu, mas sabe-se lá para que mercado eles estão sendo formados. São iniciativas pontuais, mas que vinham fazendo do Theatro São Pedro um espaço relevante, com uma nova proposta de programação, uma abertura para formas distintas de entender o gênero. O público e a crítica notaram. O governo, não. Ou notou, e não deu bola.
Em agosto de 2017, quando a Santa Marcelina Cultura assumiu a gestão do Theatro São Pedro, Paulo Zuben concedeu uma entrevista à Revista CONCERTO na qual foi questionado sobre qual seria a vocação atual de um teatro de ópera.
“Eu realmente acredito que a sobrevivência dos teatros passa pelo diálogo com a contemporaneidade”, respondeu. “Não se trata apenas de fazer obras contemporâneas, mas também de repensar de modo atual o grande repertório. A ópera pode dialogar com a sociedade atual? Como? Nós não moldamos as pessoas de hoje, mas podemos tocá-las, transformá-las para que apoiem a existência daquilo que fazemos.”
A necessidade de se relacionar de maneira mais ampla com a sociedade, com o público, com as questões de nosso tempo, é imperativa no meio artístico atual e deve ser também para um teatro de ópera. E Zuben falava justamente da tentativa de descobrir como isso poderia de fato acontecer. Em outras palavras, como tornar um teatro de ópera ainda mais relevante na vida das pessoas? É uma pergunta difícil, mas partia do pressuposto de que a ópera, como gênero, continha as respostas possíveis.
O Novo Theatro São Pedro imaginado pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa simboliza uma mudança de ideia. Como tornar um teatro de ópera relevante, como fazer dele “um espaço para todos”? A resposta, agora, é: fazendo menos ópera. E assim são reforçados, como política cultural (e usando como desculpa a causa importante da busca por novos públicos), os velhos preconceitos com relação a um gênero artístico.
É a saída mais fácil, mas, para um teatro de ópera, estranha.
Então, no fundo, a notícia é essa: o Theatro São Pedro não é mais um teatro de ópera.
Leia mais
Notícias Sem explicitar papel dos musicais, Theatro São Pedro apresenta temporada 2020
Crítica 'Madame Butterfly' e o amor pela ópera, por Nelson Rubens Kunze
Crítica O teatro barroco de Joyce DiDonato, por Irineu Franco Perpetuo
Crítica O concerto que Brahms não escreveu e o Villa-Lobos guru da MPB, por João Marcos Coelho
Colunistas Leia outros textos de João Luiz Sampaio