Ouvir música... e também o clamor das ruas

por João Marcos Coelho 26/06/2021

Volta e meia releio partes de um dos livros que me acompanha desde que foi publicado pela primeira vez, em 2001, na França: Escuta – uma história de nossos ouvidos, do filósofo francês Peter Szendy. Não me canso de descobrir, a cada vez, um novo ângulo, uma nova maneira de tratar da escuta musical. 

Ao pesquisar há dias a relação das obras musicais e os arranjos, transcrições, etc., que provocam ao longo do tempo, encontrei reflexões certeiras. “Os arranjadores”, escreve Szendy, “assinam sua escuta. São talvez os únicos ouvintes da história da música que escrevem suas escutas, em vez de descrevê-las (como fazem os críticos). E por isso me agradam, pois me fascina escutar alguém que escuta. Me fascina ouvi-los ouvir”.

O exemplo que dá é perfeito para ilustrar sua tese: a Toccata e fuga em ré menor BWV 565, de Bach e a versão sinfônica realizada pelo maestro Leopold Stokowski em meados do século passado, quando foi titular da Orquestra da Filadélfia.

“Que surpresa quando escutei a obra orquestrada por Stokowski! Podem dizer o que quiserem: que é kitsch, de mau gosto... É possível. Mas o que me fascina é a experiência da escuta de um arranjo semelhante: meu ouvido fica perpetuamente tenso, isolado entre a orquestra real e o órgão imaginário que não deixa de se superpor como a sombra da lembrança. Ouço, indissociáveis, o órgão filtrado pela orquestra e a orquestra filtrada pelo órgão fantasma. Aí reside, acredito, a força própria de todo arranjo: ouvimos duplamente. Nesta escuta oscilante, nesta escuta que se deixa penetrar pela separação atravessada todo o tempo entre a versão original e sua deformação no espelho da orquestra, o que ouço é, de certo modo, que a originalidade do original recebe seu próprio lugar a partir de sua prova plástica.”

É uma experiência plástica porque, na orquestração, as notas “se estiram ou comprimem, adquirem novo peso; a orquestra as estira até registros nos quais resultam ponderadas, nos quais ganham em peso ou leveza; tornam-se mais pesadas ao passarem pelo filtro granuloso dos contrabaixos, despedaçam-se na sutil mistura das flautas e das harpas...”

Estamos acostumados a repetir mil e uma vezes que, até o advento da reprodução fonográfica na passagem dos séculos XIX e XX, os arranjos eram muito populares e basicamente funcionais, ou seja, supriam a vontade dos amadores de reproduzir em suas casas as obras que raramente tinham a chance de assistir em concertos. Para Szendy, os arranjos são “o paradigma de uma relação crítica e ativa com as obras”.

Ou seja, um ato de amor e paixão de um músico pela obra de outro músico. Faz todo sentido hoje, quando Luciano Berio arranja a Retirada noturna de Madri, de Luigi Boccherini, compositor italiano do século XVIII que viveu grande parte da vida na península ibérica, superpondo as três versões originais. E dignifica os milhares de arranjos, paráfrases e variações sobre obras populares, outras nem tanto, mas todas objeto de admiração dos arranjadores.

É por isso que o trabalho refinado de músicos notáveis como Luca Raele, Teco Cardoso/Tiago Costa e Gil Jardim é muito melhor do que supomos. Quem duvidar, por favor, escute com ouvidos atentos:

1) A sutil, refinadíssima versão para saxofone (Teco Cardoso) e piano (Tiago Costa), do Andante, segundo movimento do Concerto para piano e orquestra de Scriabin, que está no álbum “Erudito Popular... E vice-versa” (2018).

 

2) EruDito, álbum lançado no finalzinho de 2020 pela YBMusic, um trabalho admirável de paixão por algumas das obras mais conhecidas da dita música clássica, ou erudita. Só que “versadas”, expressão do clarinetista, pianista e arranjador Luca Raele, ex-Nouvelle Cuisine, cérebro do Sujeito a Guincho, quinteto de clarinetes. Versadas, aqui, significa melodias e temas transfigurados em canções populares, com letras de Marcelo Quintanilha e arranjos, sou obrigado a repetir, refinadíssimos, de Raele. Um entre onze exemplos: Luca replica o conhecidíssimo primeiro tema do Poco Allegretto, terceiro movimento da Terceira sinfonia de Brahms... e também o segundo, no qual poucos prestam atenção, mas é tão belo quanto o primeiro. A letra de Quintanilha e o arranjo de Raele fundem-se na canção dos refugiados intitulada Nem País Nem Paz (que conta com a voz do padre Fábio de Melo);

 

3) E o mais recente petardo assinado pelo maestro Gil Jardim, titular da Orquestra de Câmara da USP (OCAM) desde 2001. Tem por título Olho da rua. Em seus pouco mais de 7 minutos de música, dança e imagens, rompe um paredão invisível, mas poderoso ao incorporar um rapper, um MC e duas slammers em ritmadas granadas verbais misturadas com street dance e falas contundentes do Padre Júlio Lancellotti, o anjo protetor da população de rua do centro de Sâo Paulo... O tema é a fome: será que nos desumanizamos a ponto de fazer de conta que esta população de cerca de 24 mil pessoas não existe? Gil usou trechos de peças de dois compositores contemporâneos, Alexandre Lunsqui e Valéria Bonafé (gravadas antes da pandemia). E contou com o Coral Paulistano para gravar com segurança sanitária, tudo remotamente, o Dies Irae do Requiem de Mozart.

 

Ouvem-se nitidamente estas palavras atualíssimas: “Quanto temor haverá então quando o Juiz vier para julgar com rigor todas as coisas”. Ano passado, Gil marcou um golaço com outro vídeo, Inumeráveis, sobre poema de Bráulio Bessa e música de Chico César: 9 impactantes minutos nos quais se dá nome a mães, pais, filhos, irmãos, sobrinhos, netos que morreram e continuam morrendo como moscas – hoje mais de 500 mil – à espera da vacina. Assista. Agora, o maestro marca outro gol de placa com este vídeo-campanha para arrecadação de alimentos, visando manter viva a população de rua paulistana. Assista e colabore. É mais que um dever. É gesto de humanidade, atributo raro hoje em dia neste destroçado “país do futuro”.

Cena do vídeo 'Olho da Rua', da Orquestra de Câmara da ECA-USP [Reprodução]
Cena do vídeo 'Olho da Rua', da Orquestra de Câmara da ECA-USP [Reprodução]

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