Escrevo pouco depois do anúncio da morte do compositor húngaro Peter Eötvös, aos 80 anos, no dia 24. O normal seria dedicar um artigo a outro ilustre músico que nos deixou praticamente ao mesmo tempo: o pianista italiano Maurizio Pollini. Optei por Eötvös porque sua trajetória e obra permanecem quase anônimas na nossa vida musical – mesmo nas tribos contemporâneas, mesmo tendo sido um sismógrafo privilegiado da realidade musical do planeta nas últimas seis décadas.
Nascido na Transilvânia numa cidade então pertencente à Hungria e hoje à Romênia, era de família húngara. Estudou em Budapeste e depois na Alemanha. Numa entrevista a Balint András Varga, contou como descobriu e se maravilhou com a música de Anton Webern: János Viski, seu professor de composição na Academia de Música de Budapeste, “um homem incrível, um verdadeiro mestre e anjo da guarda para o jovem que eu era (...) Ele me fez sentar ao lado de um enorme e inspirador gravador Grundig e disse: ‘Agora vou mostrar a você uma música que você nunca ouviu antes. Vou deixar você ouvir sozinho’. E então acrescentou: ‘São obras de Webern’. Fiquei maravilhado, ou devo dizer encantado? Eu não tinha ideia de que a música poderia ser assim. Incrivelmente, experimentei um mundo sonoro inimaginável se abrindo em toda a sua riqueza diante de mim. Isso me surpreendeu imediatamente. Foi um dos momentos mais bonitos de toda a minha vida. Absolutamente único”.
Eötvös diz que se comportou como “uma abelha num pote de mel”: “Não consegui sair dela por muitos anos. A pureza de seu idioma musical, sua transparência, sua geometria natural me fascinaram infinitamente”. Mas, já na maturidade, reconheceu que “essa música também exerceu uma influência negativa, na medida em que por muitos anos não me deixou descobrir meu próprio idioma, meu próprio estilo, meu próprio mundo pessoal. Senti que sua forma de perfeição estava além do alcance, nunca poderia construir minhas estruturas com tanta clareza, falhei em alcançar seu domínio técnico, artístico e espiritual. A clareza de Webern era ofuscante demais; sua obra provou ser um obstáculo intransponível que não consegui superar por muito tempo...”
Khrushchev não era Stálin, anota Varga, mas a opressão espiritual ainda estava presente e o menor sinal de simpatia pela cultura ocidental era interpretado como um possível e perigoso contágio político a ser erradicado imediatamente. Ferenc Szabó, diretor da Academia de Música de Budapeste, era oficial do Exército Vermelho, além de compositor. Dedicou várias obras a Stálin e fazia questão de denunciar “qualquer fenômeno suspeito na vida cultural húngara”. Levou muitos músicos e artistas húngaros à prisão ou morte pelo regime. Logo depois do episódio em que revelou a música de Webern ao jovem Eötvös, seu professor foi chamado para uma conversa com Szbó. Chegando em casa, de volta, teve um ataque cardíaco fulminante e morreu.
É por isso que, por exemplo, já estabelecido como compositor, Eötvös compôs sempre de olho na realidade política e cultural ao seu redor. É o caso de criações importantes como Alle vittime senza nome, dedicada aos refugiados africanos e do Oriente Médio, tentando escapar da guerra e perseguição. O compositor impactou-se ao ver uma foto de famílias superlotando jangadas precárias durante dias no Mediterrâneo. A obra foca nestas viagens imprevisíveis no mar. Ao terminar de compor a peça, Eötvös deu-se conta de que a dramaturgia rítmica e temática sugeria uma coreografia. Assim ela tornou-se o primeiro "requiem dançado" da história da música, segundo sua expressão. Foi encomenda da Filarmônica do Scala, da Orquestra da Academia Nacional de Santa Cecília de Roma, da Orquestra da RAI de Turim e do festival Maggio Musicale Fiorentino e estreou em 2017, com o compositor na regência.
Três anos antes, ele estreou a ópera Der goldene Drache (O Dragão Dourado), sobre a imigração ilegal, encomenda do Ensemble Modern na temporada 2013/14 da Ópera de Frankfurt. Esta sim uma ópera de 90 minutos mais próxima à ópera convencional. Na década de 1970, em que estudou com Stockhausen, fazia música eletrônica, como Elektrochronik. Em 1981, o compositor alemão confiou-lhe a regência da estreia de sua ópera Donnerstag aus Licht no Scala de Milão.
Naquela mesma década ,em 1978, Pierre Boulez pediu-lhe para reger o concerto de abertura do IRCAM em Paris; em seguida, indicou-o como diretor musical do Ensemble intercontemporain, onde permaneceu até 1991.
A Ópera chinesa, de 1986, “tem pouquíssimo a ver com as autênticas óperas chinesas”, escreveu o compositor. “Minha ópera chinesa é escrita especificamente para apresentação teatral e cinematográfica: é a música de minha própria limitada ‘província’”. Foi encomendada e estreada pelo Intercontemporain. Como anota Peter Szendy, “é para ser ouvida visualmente”.
Foi apenas a primeira de uma série expressiva, ao todo 14 criações que revisitam o reino da ópera, como Três irmãs (1986), Anjos na América (2004) e Amor e outros demônios (2008). Em várias, sua mulher Mari Mezei foi parceira na dramaturgia e libreto.
Várias das obras citadas estão disponíveis nas plataformas de streaming. E é possível, além das palavras, experimentar a diversidade e qualidade de invenção de sua obra. Não me lembro de nenhuma execução destas obras por aqui – eletrônicas, instrumentais ou de teatro musical.
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