Se não agora, quando?

por Jorge Coli 30/04/2021

O que estarão fazendo os compositores nestes tempos trágicos de agora? A resposta imediata que me vem ao espírito é: tentado sobreviver, como cada um de nós. Mas estariam eles também compondo? Neste caso, a música expressaria o tremendo período pelo qual passamos?

Nas artes plásticas, não vejo muito empenho em interferir no estado de coisas. A pintura, desde os grandes da era contemporânea, David, Géricault, Delacroix, até o Picasso de Guernica, interferiu, denunciou. A música também: Beethoven, Verdi, Chopin, Chostakovitch.

Talvez fosse mais estimulante quando a crise era acompanhada de um sentimento de luta, seja ele coletivo ou individual. O que podem fazer hoje os compositores, quando o sentimento é o de uma completa deliquescência? Deliquescência política, deliquescência sanitária. Nossos dias, com seu cortejo imenso de mortos, suscitam algum estímulo criador? O caráter pouco heroico desta sobrevivência angustiada estimula algum lamento, ou alguma exaltação? Penso na Sinfonia “Das vozes esquecidas”, de Marco Padilha que, no meu sentimento, corresponde tanto àquilo pelo qual passamos hoje. Seus longos gemidos iniciais, seu desenrolar narrativo de um mundo sem perdão, vibram na alma, como seu próprio canto. Penso no Chant  funèbre, de Albéric Magnard, esse germanófilo abatido por soldados alemães durante a primeira guerra mundial; no Spirit of England, de Elgar, em particular no seu último movimento, For the fallen. Temos 400 mil caídos neste Brasil que está à matroca, nas mãos de ineptos perversos. Será que esse estado tremendo não levará ninguém a pensar numa cantata ou sinfonia pelas vítimas do descalabro?

Porém, de que valeria isso? A música dita clássica atinge hoje tão pouca gente, ainda mais a música contemporânea, que uma composição nesses moldes interviria de maneira insignificante no curso dos acontecimentos. Quando eu ouço falar em cultura, tiro meu revólver, teria dito Goebbels ou algum outro nazista. A sonata contra a “arminha” eleitoreira do desgoverno brasileiro? O quarteto de cordas contra a covid? A cantata contra o desmatamento? É absurdo.

Quem cantará cada um de nós, nossas dores e angústias, para ajudar-nos a nos mantermos vivos?

No entanto, se a música deixou de ser um instrumento de ação, simbolicamente poderoso, ela deveria continuar vivendo com seu tempo, para mover, ou comover (no sentido etimológico de mover com) o ouvinte. Fazer arte na abstração incólume dos projetos teóricos ou formais pode dar belos resultados. Mas quem cantará cada um de nós, nossas dores e angústias, para ajudar-nos a nos mantermos vivos? O inimigo é uma hidra de Lerna, com suas múltiplas cabeças, que destrói por meio de um hálito fétido.

Os combatentes pela unidade italiana iam para as batalhas cantando coros das óperas de Verdi. Mas Maurice Ravel dedicou cada dança de seu sutilíssimo Tombeau de Couperin a um de seus companheiros perdidos na primeira guerra mundial. De um lado, a força da veemência combativa. De outro, a fidelidade ao espírito de sutileza, discreto, elegante. Verdi ajudou as lutas do Risorgimento, o Tombeau de Couperin não ajudou nenhum movimento combativo ou social: nele, a emoção dissimula-se sob o requinte.

Mas Verdi e Ravel, humanos, tão humanos, fizeram brotar música das dores que viveram. Que músicas estarão nascendo hoje? Porque, retomando Primo Levi, se non ora, quando?

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Viva Verdi

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