No último dia 14 de abril, o pianista russo Alexei Lubimov, nascido em Moscou 77 anos atrás, teve seu recital interrompido por policiais. Ele tocava, para uma plateia atenta, o Impromptu nº 2, opus 90, de Franz Schubert quando lhe ordenaram que parasse de tocar. Desobedeceu a ordem, continuou a tocar enquanto todos os presentes ao Centro Cultural DK Rassvet, em Moscou, convidados a saírem do recinto, sacaram seus celulares e registraram a intimidação – e a performance do pianista.
O pretexto era uma denúncia anônima de uma bomba no prédio. Na verdade, a intenção era melar o recital mesmo, porque Lubimov incluiu no programa peças do compositor ucraniano Valentin Silvestrov, de 84 anos, que fugiu de Kiev semanas após o início da invasão russa. Hoje refugiado em Berlim, Silvestrov vem dando declarações públicas de que considera Putin “um terrorista”.
Esta é uma situação com a qual muitos artistas russos – não só músicos, mas também escritores, professores, intelectuais em geral – conviveram durante quase todo o século XX. Que o digam compositores como Shostakovich e Prokofiev, para ficar só nos mais conhecidos. Mas é preciso lembrar também dos menos conhecidos. Como o polonês radicado em Moscou Mieczyslaw Weinberg (1919-1996), preso por doze anos, entre 1948 e 1960, sem nenhuma acusação formal. Ou o ainda menos conhecido Nikolai Roslavets, expoente da década de ouro de experimentação da URSS, os anos 1920, que nos anos 30 foi denunciado como “inimigo do povo russo”. Nada mais se falou dele. Roslavets morreu em 1944, totalmente esquecido.
A história dos músicos russos ou nascidos nos países integrantes da União Soviética é ainda mais triste – e menos conhecida –, mas nem por isso menos sofrida. E pouco pesquisada.
O episódio de Lubimov me chamou a atenção porque ele é um pianista tão talentoso quanto Nicolas Angelich ou Radu Lupu, porém menos conhecido, apesar de uma carreira muito sólida, sobretudo no universo francês.
Seu primeiro álbum dedicado à música para piano solo de Silvestrov é de 1992, trinta anos atrás. Silvestrov é refinado praticante do polistilismo cujo representante “soviético” mais famoso é Alfred Schnittke.
Mas meu primeiro contato com ele foi um álbum de 2012 da ECM dedicado a John Cage, o “enfant terrible” da vanguarda norte-americana. Ele acompanha a cantora e compositora Natalia Pschenitschnikova em canções e peças para piano dos anos 30 e 40. Canções nas quais Cage musicou versos de poetas e escritores como James Joyce, Gertrude Stein, e.e. cummings.
Aqui Cage faz aflorar sua, digamos, particularíssima porção lírica tecida com simplicidade e delicadeza. Claro, o Cage conhecido está presente nas peças para piano e piano preparado, mas esta é uma música tranquila. Com toques experimentais, como em “Wonderful Widow of Eighteen Springs”, para voz e piano fechado (ou seja, o pianista apenas batuca no tampo). Os sons estranhos que se intrometem nesta música em geral tão plácida são sinais do espírito libertário de Cage pedindo passagem.
Naquele mesmo ano de 2012, Lubimov lançou um notável álbum duplo também pela ECM com a obra para piano de Claude Debussy em que leva em conta os fundamentos da interpretação de sua obra a partir dos pressupostos do próprio compositor. Lubimov recria a impressão que o próprio Debussy provocou em Alfredo Casella, que tocou com ele e o assistiu interpretando estes prelúdios. Dizia Casella que tinha a impressão de que Debussy tocava diretamente nas cordas do instrumento, sem nenhum mecanismo intermediário. “O efeito era um milagre de poesia."
Aluno do célebre Neuhaus em Moscou, Lubimov foi um dos primeiros a tocar música contemporânea de Ligeti, Cage e Stockhausen na União Soviética – e por isso ficou confinado até quase a derrocada final do regime. Mais um perseguido pelos comissários do povo da ex-URSS. Foi a razão que o levou a se aprofundar ainda mais em sua outra especialidade: a música antiga, os pianofortes e os cravos.
Nos anos 90, ele se impôs na cena ocidental, tanto em música do século XX quanto em música antiga. É preciso saber disso para se ter a medida de sua atitude antes de gravar o piano de Debussy. Foi atrás de instrumentos do início do século XX mais adequados para a veiculação da música do autor da Suíte Bergamasque: "Em minha pesquisa”, escreve no texto do encarte, “topei com dois instrumentos que me seduziram e trouxeram uma nova vida à música”. Um deles era um Steinway de 1913; o outro, um Bechstein de 1925. Classificou o som do Bechstein como “claro, cortante, translúcido e leve”. Foi esta a razão que o levou a escolhê-lo para interpretar os doze prelúdios do livro I, compostos em 1909-10. Vale a pena ouvi-lo interpretando estes prelúdios.
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