Uma guerra sem fim

por João Marcos Coelho 30/05/2022

De repente, me dei conta, no meio de uma das aulas do curso “Música & Guerra Fria”, que o evento mais grandioso e simbólico da Guerra Fria completa exatos 70 anos. Mais precisamente, de 30 de abril a 1º. de junho de 1952, aconteceu em Paris o Festival L’Oeuvre du XXe Siècle. Ao todo, 26 concertos sinfônicos, óperas e balés, complementados por sete concertos camerísticos.

Foi o primeiro evento de grande porte no segmento da música clássica usado como arma de combate na guerra fria cultural que perduraria até a queda do regime soviético, em 1989, ano da simbólica derrubada do muro que separava Berlim. 

Presentes Stravinsky, a Sinfônica de Boston com seu titular Charles Munch e outras oito orquestras europeias de primeiríssimo time. Com requintes como chamar Pierre Monteux para reger a Sagração da primavera no mesmo teatro que assistiu à tumultuada estreia da obra, em 29 de maio de 1913, com o próprio Monteux no pódio.

Ao pesquisar, descobri que um jornal comunista, “Combat”, chamou o evento de “Festival da OTAN”. E aí me veio um travo amargo à boca. Estamos, setenta anos depois, na mesmíssima situação do pós-segunda guerra. Existe questão mais atual, hoje em 2022, do que a OTAN, real pivô da guerra Rússia-Ucrânia? O cinturão de segurança foi montado pelos EUA logo após o término da Segunda Guerra Mundial.

Voltemos ao festival. Foi uma derrama de dinheiro naquele maio de 1952. Nicolas Nabokov era primo do excepcional escritor russo Vladimir. Estudou música, dizia-se compositor, mas neste ramo era medíocre. Seu talento era outro. Empregado do departamento cultural da CIA – sim, a CIA tinha um departamento de guerra cultural, secreto naturalmente –, Nabokov gastou o equivalente a mais de US$ 1,5 milhão só pra levar a Sinfônica de Boston a Paris. O nome oficial público do departamento de assuntos culturais da CIA era Congresso para a Liberdade Cultural. 

Montou a festa em apenas um ano. Em maio, prometeu a seus superiores: “Será a primeira colaboração estreita de organizações artísticas norte-americanas de alto nível na Europa com as europeias, e também da produção artística norte-americana em pé de completa igualdade com a produção artística europeia”. Se tiver sucesso, prognosticava Nabokov, “ajudará a destruir o pernicioso mito europeu (cultivado com êxito pelos stalinistas) da inferioridade cultural norte-americana. Será um desafio da cultura do mundo livre à incultura do mundo totalitário, além de fonte de coragem e reerguimento moral em particular para os intelectuais franceses, pois voltará a dar uma espécie de sentido e propósito à vida cultural perturbada e desintegrada da França e da maior parte da Europa”.

A “lavanderia” instituída para manipular sem suspeitas as polpudas verbas foi montada apenas quatro meses antes do festival: em janeiro foi criada a Fundação Farfield. Agentes da CIA propuseram a um milionário de Manhattan que assumisse a presidência da instituição de fachada. Uma história cheia de podridão e corrupção, contada em detalhes por Frances Stonor Saunders no livro Quem pagou a conta (Ed. Record, 2008).

Nicolas e Vladimir Nabokov [Reprodução/WikimediaCommons]
Nicolas e Vladimir Nabokov [Reprodução/WikimediaCommons]

Aos interessados por música, é bastante instrutivo saber por que as coisas nem sempre são o que parecem. Por exemplo: a programação dos 26 grandes concertos, balés e óperas era conservadora, com as dez obras de Stravinsky (velho amigo de Nabokov) como joia da coroa. Outros compositores russos estigmatizados pela URSS também tiveram destaque. O mais curioso é que os sete concertos camerísticos, que tiveram curadoria do crítico musical francês Fred Goldbeck, construíam um retrato inteiramente oposto da música do século XX. Se de um lado celebrava-se a Sinfonia em dó de Stravinsky, obra bem comportada, tonal, de outro havia a estreia parisiense de Structures 1, que Pierre Boulez compusera um ano antes, em 1951. Além dela, a monumental Concord Sonata de Charles Ives, o quarteto de cordas nº 2 de Schoenberg e peças do russo emigré Arthuir Lourié, entre outros. 
Na Guerra Fria cultural, vendeu-se o tempo todo – e dos dois lados – gato por lebre. Nada era o que parecia. Como hoje.

Fecho com um parágrafo impactante do  dramaturgo Arthur Miller, enojado ao ver que de repente os alemães, de inimigos mortais, passaram a ser amigos; e os soviéticos, que pouco antes eram amigos e compartilhavam as mesmas trincheiras, viraram inimigos:

“Uma ignomínia. Anos depois, pareceu-me que essa virada acachapante, esse arrancar dos rótulos do Bem e do Mal de uma nação para colá-los em outra havia contribuído para fazer murchar a própria ideia de um mundo sequer teoricamente moral. Se o amigo do mês passado podia transformar-se tão depressa no inimigo deste mês, que profundeza realista poderiam ter o bem e o mal? O niilismo – ou pior, a diversão bocejante – diante do próprio conceito de imperativo moral, que viria a se tornar um marco da cultura internacional, nasceu nesses oito ou dez anos de realinhamento depois da morte de Hitler.”

Caramba, este fantasma teima em permanecer atual. Até em atos hediondos como o assassinato, nos moldes nazistas, de Genivaldo de Jesus em Recife, na semana passada, com uma câmara de gás portátil, improvisada no porta-malas de uma viatura policial.

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