Há dias, li uma notinha muito engraçada de Alex Ross em seu blog. Ele, por sua vez, citava uma nota de alguém chamado Vinny. Resumo a estorinha que Vinny ouviu de Gerald Levinson, seu professor na universidade, acontecida quando este estudava em Paris com Olivier Messiaen. Tudo corria bem num jantar de confraternização entre alunos e o casal 20 da música francesa do século XX. Atmosfera vibrante, até que alguém perguntou “sobre o mérito de Rachmaninov”. A mulher de Messiaen, Yvonne Loriod, virou-se para o marido e perguntou-lhe: “O que achamos de Rachmaninov?”. Após um constrangedor silêncio de dois minutos, ele decretou: “Nós aprovamos”.
O compositor russo é uma das vítimas preferenciais deste preconceito, do qual nenhum outro de qualquer país esteve, está ou estará a salvo. Villa-Lobos, por exemplo, foi solenemente desprezado pelas vanguardas mais radicais dos anos 60/70, um tanto por sua adesão pornográfica ao getulismo, outro por seu nacionalismo. Willy Correa de Oliveira passou quinze anos “matando” Villa em suas aulas de composição no Departamento de Música da ECA-USP (palavras dele mesmo, não são minhas). E só depois de aposentado, setentão, “reabilitou-o” num texto famoso, que virou o livro Com Villa-Lobos (Edusp, 2010). O livro traz o texto, mas é preciso ler também a entrevista que fiz com ele em março de 2008 para o Estadão para avaliar a mudança radical que o levou a exaltar Villa como um dos grandes compositores do século XX, a partir da audição das Cirandas, por Sonia Rubinsky.
Parece piada, mas este comportamento musicalmente correto é recorrente na vida musical, sobretudo a da academia. Semana passada, participei de uma mesa-redonda do Festival Chopin na USP, ao lado dos pianistas Donata Madjeska, Eduardo Monteiro e Luiz Guilherme Pozzi (disponível no canal do YouTube da USP). O compositor polonês, de fato, ressente-se da sua reputação póstuma de ser um compositor a caráter para as pianistas mulheres, que sua música é feminina, etc, etc.
De fato, fui eu a ressaltar este preconceito na mesa redonda, a partir de duas entrevistas dos anos 1990 de dois pianistas para o jornal The New York Times, citadas por Jeffrey Kallberg em seu livro Chopin at the boundaries – sex, history & musical genre (Harvard, 1996).
Kallberg começa contando que vários grandes pianistas evitam tocar Chopin. E cita Rudolf Serkin, Glenn Gould e Alfred Brendel. Claro, diz ele, há pianistas que se destacaram em Chopin mas também brilharam em Beethoven, um nome que sempre foi certificado de excelência para todo pianista provar que está entre os melhores, casos de Dinu Lipatti, Maurizio Pollini e Arthur Rubinstein. E se pergunta: o que leva grandes pianistas a escantearem Chopin?
É onde entram as entrevistas de Perahia e Grimaud. O primeiro reclama que, além de Chopin, precisava destacar-se também como intérprete de Beethoven para se consolidar (cito de memória, o sentido da colocação é este); Hélène Grimaud diz o contrário, que era vista como uma pianista masculina por enfrentar o repertório clássico, e que voltou-se para Chopin para provar sua feminilidade.
Ou seja, existe uma cartilha não escrita que deve ser seguida pelos músicos que queiram vencer na profissão. Yvonne Loriod, imaginem, era uma excelente pianista (gravou Vingt Regards sur l’enfant Jésus e o monumental e dificílimo Catalogue des oiseaux, entre outras obras para piano de Messiaen), e também compositora (descobri três obras dela, todas dos anos 1940, elencadas na Wikipedia, mas não encontrei nenhuma gravação). Precisava perguntar para o marido Olivier o que ela deveria achar a partir da postura dele sobre Rachmaninov?
Jamais pergunte a algum sabichão o que deve achar desta ou daquela música ou compositor. Vá à fonte. Ouça.
O filósofo François Noudelmann escreveu um livro interessante (Le toucher des philosophes, Gallimard, 2008). É finamente hilário o capítulo sobre Sartre, que discutia em público sobre Xenakis, Stokhausen e Boulez, mas em casa preferia mesmo emocionar-se tocando – tocando não, tentando acertar uma ou outra nota, como mostra um vídeo de pouco mais de 1 minuto no YouTube – o Noturno op. 15, nº 3 em sol menor. Nietzsche discutia Wagner em público e em casa derramava lágrimas tocando mazurcas.
Aprendi com meu neto adolescente, que começava a estudar violão, quando o levei para assistir a um concerto da Orquestra Jovem do Estado com Cláudio Cruz na Sala São Paulo. Eles tocaram, se não me engano, Ravel, mas também uma peça de Xenakis. Quando terminou, tentei pedir desculpas pelo Xenakis – uma música sempre difícil de ser ouvida e entendida na primeira audição. Mas meu neto me deixou sem fala ao dizer que a de Xenakis era a peça que mais o tinha atraído. No dia seguinte, mandou e-mail dizendo que já tinha procurado no Youtube e pediu indicações de outras peças do greco-francês e de outros que fizessem música daquele tipo.
Ou seja, jamais pergunte a algum sabichão o que deve achar desta ou daquela música ou compositor. Vá à fonte. Ouça. A liberdade de escolha hoje é infinita – “obscena”, escreveu alguém esta semana sobre a disponibilidade de música ao alcance de um clique. Pois mergulhemos nesta bacanal libertária que nos dá acesso a tudo, presente, passado – e até olhadelas na música do futuro.
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Comentários
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Já fui ridicularizada por…
Já fui ridicularizada por uma musicista profissional por eu gostar de Tchaikovsky. Obrigada pelo texto.
Não é necessário perguntar a…
Não é necessário perguntar a alguém sobre música. Ouça, muitas vezes, e se você gosta da música e, em decorrência do seu compositor, é tudo que você precisa saber.
O gosto musical é particular de cada um.
Texto delicioso, João. Nunca…
Texto delicioso, João. Nunca tinha visto Sartre ao piano. Em sua história da música, Otto Maria Carpeaux escreveu que a de Tchaikovsky, que era muito apreciado por Stravinsky - talvez para estranhamento dos "vanguardistas" - era música de gosto duvidoso (não lembro bem suas palavras). Engraçado é que nesse mesmo livro ele insistia que Rachmaninov havia se suicidado. De minha parte, adoro Tchaikovsky e acho o pequeno livro de Carpeaux estupendo, de uma erudição sem igual. Também é notável que ele equipare a música de Bach a um exercício em cálculo integral. E, pitoresco, a exaltação que ele faz a Rameau, se a memória não me falha, tão importante quanto o alemão para a evolução da música ocidental - se não mais...