Ao abordar espaço e dificuldades, levantamento confirma muito do que se sabe por prática e observação do meio, embora o tema seja pouco discutido
Acaba de sair um estudo que, a partir de entrevistas com musicistas brasileiras, procurou mapear os desafios mais urgentes que elas enfrentam, sobretudo aqueles relacionados com a falta de exposição na mídia e o acesso deficiente a oportunidades de trabalho, receita e financiamento. Intitulado AmplifyHer: Voicing the experience of women musicians in Brazil, a pesquisa envolveu pesquisadores da Manchester Metropolitan University, da Universidade de São Paulo e da Edinburgh Napier University.
Entre março e julho de 2021, doze mulheres musicistas de São Paulo foram selecionadas respeitando-se duas divisões básicas, que procuraram dar conta de refletir uma realidade mais ampla: por faixa etária e por raça (ou etnicidade, como se referem os autores). Assim, foram escolhidas seis participantes brancas e seis negras. Já a subdivisão por faixa etária resultou em seis mulheres dos 20 aos 39 anos (Novos Talentos); três entre 40 e 55 anos (Artistas Estabelecidos) e três pertencentes à faixa etária dos 55 e acima (Artistas Sêniores). Por sua vez, os gêneros musicais foram variados: há mulheres ligadas ao jazz, música experimental, música erudita e popular.
O estudo confirma muito do que se sabe por prática e observação do meio, embora pouco se discuta e menos ainda se faça um levantamento regular e rigoroso. Talvez um dos elementos que mais salte aos olhos seja a questão racial: a totalidade das participantes brancas considerou que o seu nível de acesso a recursos econômicos favoreceu a sua trajetória profissional, enquanto a totalidade das participantes negras considera que a falta de acesso as impossibilitou em algum momento. Ou seja, a etnicidade impacta diretamente no acesso a recursos econômicos e, consequentemente, em oportunidades profissionais.
É curioso notar como a faixa etária se reflete diretamente no nível de conscientização quanto à discriminação de raça e gênero. Enquanto participantes mais jovens apontam a necessidade de um esforço coletivo para alcançarem seus objetivos, algumas participantes mais velhas desviam de perguntas desse tipo, preferindo destacar aspectos de opressão de gênero ou estereótipos físicos, segundo os autores do estudo. A boa notícia é que a discussão em torno das dificuldades e oportunidades para as mulheres no meio musical tem se intensificado e veio para ficar, como provam as novas gerações, que enxergam essa questão como central.
A maioria das participantes mais velhas relata grande dificuldade em participar de cargos de chefia; mais jovens ressaltam o medo de assédio sexual e moral nos ambientes de trabalho
Outra questão que aparece na pesquisa é a da maternidade. As participantes mais velhas foram unânimes em relatar dificuldades em gerir o contexto pessoal e profissional. Algumas, inclusive, afirmaram não ter sido mães por acharem impossível conjugar a maternidade com a profissão, e assumem que a escolha por não ter filhos proporcionou uma vida profissional mais plena. Já outras, que são mães, creditam a boa ou má parceria em casa como fator preponderante na percepção das dificuldades de gestão da vida profissional e pessoal.
Também salta aos olhos o fato de que em todas as faixas etárias um número significativo de mulheres acredita que a condição feminina determina seu papel e sua posição no meio musical. Enquanto a maioria das participantes mais velhas relata grande dificuldade em participar de cargos de chefia, boa parte das mais jovens ressaltam o medo de assédio sexual e moral nos ambientes de trabalho, além de falta de segurança física nos percursos que as levam a estes ambientes.
A pesquisa AmplifyHer se complementa com vídeos individuais das 12 participantes, que falam de sua trajetória e de algumas de suas vivências no ambiente musical. Vale a pena conferir suas falas, como os bonitos depoimentos da contrabaixista Sonia Ray e da musicista Rosa Couto, ambas também educadoras. Os vídeos estão disponíveis no canal do projeto no YouTube.
Persiste a ideia de mulheres como divas do palco, enquanto os homens dominam a criação intelectual
Os dados da pesquisa AmplifyHer se somam a outras, como o levantamento que vem sendo feito anualmente pela União Brasileira de Compositores (UBC) desde 2018 e que nos permite ter um panorama mais acurado sobre a condição da mulher brasileira no ambiente de trabalho musical. Segundo o levantamento Por elas que fazem a música, os direitos autorais ainda refletem um grande desequilíbrio de gênero no Brasil. Entre os 100 maiores arrecadadores de direitos autorais no país, apenas 10 são mulheres. Entidade responsável distribuição de quase 60% dos direitos autorais de execução pública musical no país, a UBC revela através do relatório que, em 2019, a disparidade dos valores totais distribuídos também foi grande, sendo 9% para as mulheres e 91% para os homens. Já os recebimentos como intérprete têm o dobro da importância econômica para as mulheres: enquanto 14% das receitas masculinas são oriundas de interpretação de canções, para as mulheres este trabalho gera 27% de suas arrecadações. Ou seja, persiste a ideia de mulheres como divas do palco, enquanto os homens é que dominam a criação intelectual. O relatório de 2021 da UBC pode ser baixado aqui.
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.