Prefeitura não pagou integralmente, em 2022, o valor de R$ 112,46 milhões previsto no contrato de gestão; para 2023, reajuste não repõe perda inflacionária
Não há no mundo, e nunca houve, orquestra sinfônica ou teatro de ópera profissional que se mantenha de maneira independente, com seus próprios recursos. Esses equipamentos não conseguem se manter financeiramente dentro de uma lógica de mercado, isto é, a partir da venda de ingressos de seus espetáculos ou da comercialização de outros produtos ou serviços associados. Desde sempre, e em todo o mundo, mecanismos de incentivo do Estado, quando não mesmo investimento público direto – como em países da Europa Central –, são parte indissociável da indústria da música clássica. É assim com a Filarmônica de Berlim, com o Metropolitan Opera House de Nova York, com a Osesp e com o Theatro Municipal de São Paulo.
Existe um livro clássico sobre gestão financeira cultural, publicado nos anos 1960 pelos economistas William J. Baumol e William G. Bowen (Performing Arts - The Economic Dilemma), em que foi definido o conceito de “cost disease”, ou, em tradução livre, “doença do custo”. É uma análise que pode ser resumida assim: em teatros de ópera ou companhias de balé não há ganhos de produtividade que possam fazer frente aos aumentos de custos decorrentes da elevação dos salários e benefícios de artistas e funcionários, do crescimento de despesas administrativas, aluguéis, impostos, alimentação, transporte e outros.
Como todos nós sabemos quando pagamos as nossas contas no fim do mês, o aumento de custos não é um fenômeno exclusivo de um teatro de ópera ou de uma companhia de dança, ao contrário, é comum a todo o ecossistema econômico. A diferença em relação à economia geral – e é aí que entra a tal da “doença” do custo –, é que em um teatro de ópera ou em uma companhia de dança não há como compensar os custos em elevação com ganhos de produtividade. Em nossa área, independentemente das inovações tecnológicas, segue sendo necessário, como há 50 ou 100 anos, você ter uma orquestra completa, um coro e um corpo de baile compostos por artistas que passaram por uma longa e custosa formação, para realizar as grandes criações legadas pelo gênio humano ao longo dos séculos.
O Theatro Municipal de São Paulo é um equipamento público, e bens públicos são também os seus corpos artísticos. O teatro é gerido por uma Organização Social, que está incumbida de desenvolver e executar a sua programação e de zelar por seus prédios e corpos artísticos (que, contudo, seguem sendo bens públicos, de propriedade do Estado). Para isso, a OS assina um contrato de gestão com o Estado, que se compromete a repassar à OS os recursos necessários para a manutenção financeira do complexo.
Se o Estado, no caso a Prefeitura, não repassa à OS os recursos necessários para a manutenção financeira do complexo e isso levar a OS a cortar a programação ou a demitir artistas, a reponsabilidade – culpa mesmo – não será da OS, mas da Fundação Theatro Municipal, da Secretaria da Cultura e, em última instância, da Prefeitura de São Paulo. Aliás, já vimos esse filme no âmbito estadual, quando a OS que geria o Theatro São Pedro de São Paulo viu-se obrigada a extinguir a Banda Sinfônica do Estado por absoluta falta de recursos. Culpa da OS? Claro que não! Culpa do governo do Estado de então, que é quem tinha a responsabilidade de mantê-la como equipamento público que era (alô alô, governador Geraldo Alckmin!).
No início do mês, a Organização Social Sustenidos, gestora do Theatro Municipal de São Paulo, fez um alerta para um déficit orçamentário de R$ 13,30 milhões nas contas de 2023. Analisando os números, percebe-se que a Secretaria Municipal de Cultura nem ao menos pagou integralmente à OS o valor previsto no contrato de gestão para 2022, de R$ 112,46 milhões. Primeiro, o contrato sofreu um aditamento que reduziu o valor para R$ 109,68 milhões. Em seguida, novo aditamento estabeleceu um acréscimo de R$ 2,66 milhões sobre o valor já cortado, o que levou ao valor final de R$ 112,34 milhões, inferior, portanto, ao valor previsto no contrato original (R$ 112,46 mi).
Para 2023, o contrato de gestão prevê o mesmo repasse de R$ 112,46 milhões, sem correção monetária pela inflação. Mas, em seu item 4.2.2, o contrato prevê a correção “em razão de variações dos valores das despesas previstas nos centros de custos e rubricas orçamentárias [...] desde que haja disponibilidade financeira específica para este fim”. A Lei Orçamentária Anual reservou o valor de R$ 114,28 milhões, o que significa um acréscimo de R$ 1,82 milhão (equivalente a um reajuste de menos de 1,7%).
A Secretaria, em uma manobra contábil, toma como base, para calcular o aumento do orçamento de 2023, o valor depreciado pelo primeiro aditamento, de R$ 109,68 milhões – em vez de tomar o valor de R$ 112,46 mi que consta no contrato de gestão –, e ainda soma os R$ 2,66 milhões desembolsados no exercício de 2022 (!). Assim, afirma que o orçamento teria tido um aumento de “quase R$ 8 milhões” (na verdade, R$ 114,28 mi – R$ 109,68 mi + R$ 2,66 mi = R$ 7,26 milhões).
O índice de inflação no período do contrato de gestão (de maio de 2021 a dezembro de 2022) foi de cerca de 13% (IGPM ou IPCA). Portanto, para que fosse mantido o mesmo valor real pelo poder de compra do contrato, o valor do repasse para 2023 deveria ser de R$ 127 milhões, ou seja, cerca de R$ 13 milhões a mais do que os R$ 114,28 milhões previstos na LOA.
Baumol e Bowen, os dois economistas da “doença do custo”, falaram da inviabilidade da manutenção de equipamentos das artes performáticas se não houver um incremento orçamentário para fazer frente à alta de custos. O que dizer no caso de o valor real do orçamento cair em cerca de 10%?
Espero que não tenhamos de ver a resposta a essa pergunta nos próximos meses, pois, se não houver a equiparação do orçamento pela inflação, ela será bem amarga...
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