Theatro Municipal à deriva

por Nelson Rubens Kunze 06/12/2018

Ação da Secretaria de Cultura e modelo de gestão equivocado ameaçam funcionamento da instituição

Pode-se contestar as suas razões e as suas ações, mas não há ilegalidade na intenção explícita da Secretaria Municipal de Cultura de romper o contrato com a entidade gestora do Theatro Municipal de São Paulo, o Instituto Odeon [leia mais]. Está lá, no item 12.4 do termo de colaboração, de forma clara e inequívoca, que qualquer das partes pode denunciar unilateralmente o contrato, com a única obrigação de comunicar a outra parte com antecedência mínima de 60 dias. Portanto, ilegal não é. Mas cabe questionar: é razoável? Romper o contrato de forma voluntariosa de um teatro em pleno e regular funcionamento, sem comprovação de irregularidades da entidade gestora, não é uma decisão um tanto quanto temerária para não dizer irresponsável? Estamos falando do maior equipamento cultural da América Latina, que inclui dois edifícios – um dos quais centenário – além de orquestras, coros balé e centenas de contratados.

Tudo funcionava bem, havia óperas, concertos, casa cheia, nenhuma notícia de escândalos ou desvios, nenhum sinal de improbidade ou malversação. Assim, foi uma surpresa quando, na quarta-feira dia 14 de novembro, a Secretaria fez circular um comunicado informando sobre um distrato bilateral amigável em comum acordo. Pouco depois, soube-se que não era nem bilateral, nem em comum acordo e muito menos amigável. E que o Instituto Odeon pretende seguir com a gestão do teatro até o encerramento do contrato, em 2021. Além disso, o Odeon ainda acusou a Secretaria de chantageá-lo para aceitar o distrato bilateral amigável em troca da aprovação da prestação de contas, apresentando gravações em que o Secretário André Sturm propõe o acordo. 

Ato contínuo ao litígio, a Secretaria publicou no Diário Oficial uma notificação de penalidade informando que a diretoria da Fundação Theatro Municipal constatou uma “série de irregularidades” na gestão do Instituto Odeon, que são “passíveis de sanções” além da possibilidade de “rescisão unilateral” do contrato. No mesmo dia, o Diário Oficial trouxe a abertura de um chamamento público para organizações da sociedade civil interessadas em gerir o Theatro Municipal.

Definitivamente, o Theatro Municipal não merece isso (e a gente também não). Mas é uma cilada que nós mesmos construímos. A culpa original é um modelo de gestão absolutamente equivocado, que, ao instituir uma fundação pública entre o Estado (Secretaria da Cultura) e a Organização Social (OS), cria uma estrutura organizacional que confunde competências e responsabilidades, além de comprometer o controle público das ações da entidade privada. É um monstrengo de duas cabeças, indomável. 

No caso presente, como se não bastasse, ainda há o agravante de o contrato, ao invés de ter sido feito pelo vitorioso modelo das OSs (como o da Fundação Osesp, por exemplo), ter sido feito por meio de uma legislação bem mais liberal e menos rigorosa, absolutamente inadequada para a complexidade do objeto (todo o equipamento do TMSP) e o valor da contratação (trata-se de um contrato de mais de meio bilhão de reais, o maior contrato na área da cultura desde Pedro Álvares Cabral!).

Infelizmente, o novo chamamento incorre no mesmo erro, ao não propor a parceria pelo modelo de Organização Social que vigora na esfera estadual. De novo teremos um contrato débil, que dá margem à ingerência estatal e não garante governança – nem do lado da entidade prestadora do serviço (que executa o plano de trabalho), nem do lado do Estado (que tem a função de estabelecer os marcos da política cultural e de fiscalizar o contrato).

Theatro Municipal de São Paulo [divulgação / Sylvia Masini]
Theatro Municipal de São Paulo [divulgação / Sylvia Masini]

Há dois dias, a 4 de dezembro, o Instituto Odeon publicou longo texto em seu site, esclarecendo as supostas irregularidades e fazendo críticas à Secretaria e ao secretário André Sturm [leia aqui]. Descontadas algumas ilações injustas (Cleber Papa não tem nada a ver com os escândalos criminosos do IBGC, Instituto Brasileiro de Gestão Cultural – quando ele assumiu, já na gestão Sturm, os responsáveis do IBGC já estavam sendo processados e a entidade já tinha passado pela intervenção saneadora), o documento contém importantes informações para a sua defesa quanto às irregularidades apontadas pela Secretaria. No meu entender, a irregularidade mais grave e comprometedora apontada (afinal, ter falhado na obtenção de um visto de trabalho não parece ser razão suficiente para colocar o teatro de ponta-cabeça) seria a de “pagamento da remuneração de profissional de captação de recursos em desacordo com a Portaria do MINC nº 5, de 26 de dezembro de 2017”. No esclarecimento, o Instituto Odeon apresenta pareceres jurídicos de dois dos mais reconhecidos escritórios especializados (Cesnik, Quintino e Salinas Advogados e Olivieri Associados), que justificam a operação. 

Enviei ontem, dia 5 de dezembro, algumas perguntas à Secretaria da Cultura. Questionei por que, uma vez constatadas as irregularidades, a Secretaria propôs o distrato amigável e não partiu de imediato para a distrato unilateral. Perguntei, também, se haveria espaço para um reatamento com o Instituto Odeon, caso as irregularidades fossem esclarecidas e sanadas. E perguntei ainda, por que o Secretário André Sturm, que no início de sua gestão reconheceu o problema do modelo de gestão e então afirmou publicamente (para o jornal O Estado de S. Paulo e para a Revista CONCERTO) que extinguiria a Fundação Theatro Municipal, por que não a extinguiu e se não tem receios de firmar um novo contrato sobre as mesmas bases instáveis do modelo bipolar de gestão atual. Não demorou muito para vir a resposta: “a Secretaria Municipal de Cultura não irá se manifestar sobre o assunto, que está sendo tratado por vias legais”.

Ontem, também, enviei algumas perguntas para o Instituto Odeon. Entre elas, se o Instituto Odeon já havia fornecido os esclarecimentos à notificação de penalidade publicada no dia 15/11. E questionei, também, se o Instituto Odeon acredita ser possível reverter a decisão do distrato unilateral. Não obtive resposta (veja adendo abaixo).

Seria desejável que a Secretaria e o Instituto Odeon refletissem e agissem com responsabilidade e prudência pelo bem maior que é o Theatro Municipal de São Paulo. E seria altamente desejável que a Prefeitura reconhecesse a inadequação do modelo de gestão e avançasse resolutamente para a sua alteração. Seria o primeiro passo para que, em pleno século 21, pudéssemos consolidar – a exemplo da Osesp e da Sala São Paulo – um teatro de ópera moderno no país.

 


Adendo em 6/12/18, às 16h

Após publicação do texto, o Instituto Odeon enviou as respostas às perguntas formuladas. Leia abaixo:

Revista CONCERTO: A Secretaria fez a comunicação formal ao Instituto Odeon da denúncia unilateral do contrato, que, conforme o termo de colaboração, deve ser feita “com antecedência mínima de 60 dias”? Ou será que aquela notificação de irregularidades publicada no Diário Oficial no dia 15/11 é suficiente?
Instituto Odeon: O ofício enviado pela Fundação Theatro Municipal ao Instituto Odeon em 14 de novembro de 2018 às 12h40 é claro em apontar supostas falhas com o intuito de justificar uma rescisão unilateral do Termo de Colaboração. Apesar disso, em nota oficial enviada no mesmo dia cerca de duas horas antes (nota publicada por essa prestigiosa publicação), a Secretaria Municipal de Cultura, à qual a FTM está subordinada, anunciara que havia chegado a um distrato bilateral com o Odeon — uma informação inverídica.
Se a Secretaria tem alguma outra intenção não expressada no ofício, só ela pode responder.

RC: O Instituto Odeon já forneceu as respostas, conforme os prazos da notificação de irregularidades publicada no dia 15/11? Quando vence este prazo e o que acontece em seguida?
IO: A notificação foi enviada em 14 de novembro. As respostas já foram enviadas à Fundação Theatro Municipal dentro do prazo estipulado. Agora é a FTM que deverá avaliar e se posicionar. 

RC: O pagamento de honorários ao captador de recursos “em desacordo com a Portaria do Minc nº 5 de 26 de dezembro de 2017” é a irregularidade mais grave apontada pela Secretaria. No esclarecimento que vocês fazem, o Instituto Odeon apresenta dois pareceres jurídicos de empresas especializadas e idôneas (Cesnik, Quintino e Salinas Advogados e Olivieri Associados) que justificam os pagamentos feitos para o captador de recursos. Qual é, no poder público, o órgão de controle competente que deliberará sobre esse assunto? É a própria Secretaria?
IO: Não há irregularidade, há uma acusação. Respeitamos sua avaliação de que esta seria a irregularidade mais grave apontada pela Secretaria. O próprio secretário André Sturm afirmou em entrevistas e declarações públicas que não há irregularidades graves cometidas pelo Odeon. O Instituto Odeon reafirma que todas suas ações seguiram os mais rígidos padrões legais e o que determina o Termo de Colaboração. Quem delibera é a própria Fundação Theatro Municipal — a mesma que fez as acusações e é parte interessada em romper o contrato.

RC: Conforme o item 12.4. do termo de colaboração, qualquer uma das partes poder denunciar o contrato, apenas sendo obrigada a comunicar a outra parte com antecedência mínima de 60 dias. Ou seja, a Secretaria tem todo o direito de romper o contrato. O Instituto Odeon acredita ser possível reverter a decisão do distrato unilateral? Como?
IO: A Secretaria sempre teve o direito de romper o contrato de forma unilateral. Ainda que o contrato preveja que isso pode ser feito de forma imotivada, seria de se esperar que o secretário explicasse à sociedade o que o levou a rescindir um contrato que foi assinado após processo lícito de escolha de uma Organização da Sociedade Civil, conduzido por comissão isenta e competente. Principalmente depois de o Theatro ter sido alvo de escândalo por acusações de fraude e corrupção do antigo gestor. Em nome da transparência e das boas práticas de gestão, seria coerente explicar os motivos. Até agora foram feitas acusações vazias, carentes de provas.
O Instituto Odeon não pode pensar em reverter algo que não foi feito. O Instituto Odeon é, por direito conquistado após ter apresentado a melhor proposta em edital de chamamento, o gestor do Theatro Municipal e pretende cumprir seu contrato até o fim.
 

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