Sígrido Levental e o Conservatório do Brooklin (lembranças pessoais)

por Nelson Rubens Kunze 03/02/2017

Eu tinha 16 anos quando subi pela primeira vez a escada estreita que levava à sobreloja de um predinho comercial da rua Álvaro Rodrigues, em frente à Igreja do Brooklin, na zona Sul de São Paulo. Era o Conservatório Musical Brooklin Paulista e eu queria estudar flauta transversal. Quem tinha me dado a sugestão era ninguém menos que João Dias Carrasqueira, o grande flautista, que havia sido primeira estante da Orquestra Sinfônica Municipal. Reprimindo minha timidez e juntando toda a minha ousadia juvenil, eu tinha telefonado para o mestre alguns dias antes: “Quero aprender flauta”, eu disse, “e soube que o senhor é professor”. Mas Carrasqueira morava do outro lado da cidade, na Lapa, e por isso recomendou o Conservatório do Brooklin. “Vai lá conversar com o Sígrido”, ele disse, “o Conservatório tem ótimos professores!” Fui. E Sígrido Levental revelou-se uma das mais extraordinárias pessoas que encontrei na vida.

 

 

Em 1975, o Conservatório era um corredor de não mais que 20 metros, ao longo do qual, para os dois lados, ficavam as portas de talvez umas dez salas. À direita de quem subia pela escada, um pequeno hall dava aos banheiros, à secretaria e à salinha do Sígrido. Sua porta estava sempre aberta e ele, sentado atrás de sua mesa, tinha uma visão privilegiada sobre o corredor e sobre a escada. Ao longo dos anos, acostumei-me a ser recepcionado, assim que alcançava o topo de escada, com um sonoro “Kuuuntze”, assim mesmo, com uma ênfase no “tz” da pronúncia alemã de meu sobrenome.

Sígrido era paralítico, usava muletas e se locomovia com dificuldades. Por conta de sua deficiência, tinha ombros grandes, largos e fortes. Também seus braços eram fortes, e tenho uma lembrança viva e emocional do aperto de sua mão quente e calejada. Mais tarde, nos beijávamos na face. Muitos anos depois, quando conversávamos por telefone, ele se despedia com “um beijão”. Sígrido não era de falar muito, era um pouco ranzinza, mas tinha um espírito maroto e tiradas espirituosas – e fumava. Fumava muito. Mantinha um cronômetro sobre a mesa para se controlar a não acender o próximo cigarro antes que se passassem 30 minutos do último. E era um trabalhador incansável, chegava sempre no fim da manhã e ficava até tarde na noite.

A gente se sentava em um banco baixo, encostado na divisória, em frente a sua mesa. Falávamos de tudo. Ele trabalhava, de vez em quando olhava para nós por cima dos óculos. Contávamos de nosso progresso, dos nossos professores, falávamos de música, das tendências estéticas, das atividades culturais. E também de assuntos pessoais – para muitos ele foi um conselheiro e terapeuta.

Sígrido não era muito expansivo. Tinha a vida dura e as limitações físicas impunham-lhe sofrimentos. De vez em quando era bronco, mas não propriamente mal humorado. Falava palavrões, gostava de provocar, mas em seu íntimo era sensível, generoso e benfeitor. Nós tínhamos grande admiração e respeito por ele. Sabíamos que ele tinha sido um pianista prodigioso.

 

 

O Conservatório tinha uma biblioteca/fonoteca simples, mas útil e adequada. Não sei se naquela época já estava lá a coleção completa da enciclopédia Grove, que anos depois consultei muitas vezes (não havia ainda google nem YouTube). E, ao lado esquerdo da escada de entrada, tinha a instrumentoteca, com vários instrumentos musicais – violino, flauta, fagote, oboé, clarinete, trompa... Ali, alunos podiam experimentar, emprestar e iniciar seus estudos, antes de investirem em um instrumento próprio. O Conservatório oferecia aulas para todos os instrumentos de orquestra, todos mesmo. Tinha até professor de tuba e de harpa.

Mais no fundo do corredor, do lado esquerdo, havia uma mini sala, que chamávamos de gráfica. O espaço era tão reduzido, que cabia apenas a máquina reprodutora, creio que era um mimeógrafo, e o seu operador. Aliás, o operador e todos os funcionários do Conservatório eram também alunos. Quando Sígrido pressentia vontade e talento em um interessado que não dispunha de meios para pagar, oferecia-lhe trabalho. Assim, havia alunos trabalhando na gráfica, na secretaria, na biblioteca. E ele acertava em suas apostas. Os jovens talentos já logo viravam professores para iniciantes, cedendo a vaga de trabalho para novos interessados. Há hoje, entre nós, maestros e músicos profissionais que iniciaram a carreira como operadores da “gráfica” do Conservatório...

Para chamar seus funcionários, Sígrido havia solicitado a instalação de campainhas que soavam em todo Conservatório. Cada um de seus ajudantes estava associado a um motivo rítmico. Queria chamar o operador da gráfica? Tchan, tchan, tchan tchaaaaan, quinta de Beethoven. Secretaria? Tchaaaaan, tchan, tchan, tchan, tchan, tchaaaaan, Sagração da Primavera. Biblioteca? Tchaaaaan, tchaaaaan, tchaaaaan, tchan, tchan, tchaaaaan, Quadros de uma exposição. Comunicação via percepção musical.

Reforçando um clima intimista e familiar que pairava no ar – sempre convidativo e aberto –, era comum encontrarmos Yunka, a esposa de Sígrido, ajudando aqui e ali. Naquela época, sua filha Rosana, ainda menina, vinha depois da escola para fazer suas lições e ter aulas de violoncelo. Anos depois, tive a honra (e responsabilidade) de ser professor de sua filha mais velha, Cláudia.

Fiz um curso de música em nível técnico, reconhecido pelo então MEC, com uma completa grade curricular e as correspondentes cargas horárias. Éramos uma classe de 7 ou 8 alunos. Meu instrumento era a flauta transversal, que iniciei com Helio Buck e Wilson Duarte Rezende. Mais para o fim do curso, tive problemas com meu professor, Jean-Noel Saghaard, primeira estante da Orquestra Estadual e grande mestre dos jovens talentos que despontavam no instrumento. Eu admirava Saghaard como excelente flautista, mas não me identifiquei com ele, não deu certo. Sígrido tratou da questão com a maior tranquilidade. Aceitou minhas ponderações. Disse que essas coisas ocorrem, que professores de vez em quando não funcionam (e não que alunos talvez não funcionassem!), que ele encontraria uma solução. E encontrou. Combinou com Grace Lori Busch, que era a flautista da Sinfônica Municipal, e acertou de ela dar aulas para mim. Esse era o Sígrido.

Também tínhamos no Conservatório aulas de instrumento complementar (eu fiz piano), além, claro, das aulas teóricas e de estruturação musical, com estudos de contraponto e de harmonia. Nosso professor era o jovem maestro Osvaldo Colarusso, que cursava paralelamente a Unesp (era uma das primeiras turmas do recém instalado departamento de música daquela universidade). E tínhamos ainda aulas de percepção, folclore, música de câmara, análise e muitas mais.

Mas a disciplina que mais me empolgava era a de história da música. Nosso professor, Arnaldo Contier, era um intelectual de vasta cultura, que, além de todo conhecimento que nos transmitia, nos ensinou a refletir com método e criticamente. Passamos por toda a história da música ocidental, problematizando os marcos de seu desenvolvimento, analisando as relações sociais e políticas com a música ou discutindo a complexidade estética na cisão da vanguarda com o nacionalismo musical. Ele era formado em História, pós-graduado pela Universidade de Toulouse e doutor pela USP. Depois fez um pós doutorado na Sorbonne e tornou-se livre docente no departamento de História da USP. Arnaldo Contier não dirigia automóveis, sempre vinha e voltava de táxi, com sua pasta. E, claro, antes da aula dava uma passada na salinha do Sígrido.

O grande acontecimento na rotina do Conservatório eram as audições. Regularmente, pelo menos uma vez por mês, aos sábado à tarde, alunos se apresentavam no auditório (sim!, uma das salas transformava-se em auditório, com um pequeno palco) para professores, pais e amigos. Tocavam os iniciantes e os avançados, crianças e adultos – pianistas, flautistas, violinistas, trompistas, violonistas, contrabaixistas, duos, trios, pequenos grupos, coral... Todas as audições tinham programa impresso na gráfica do Conservatório. E, encostado de pé ao lado da porta de entrada, apoiado sobre suas muletas, Sígrido Levental acompanhava o desenvolvimento dos seus alunos. Conhecia-os todos, pelo nome.

 

As audições serviam de pretexto para o incentivo à música de câmara, um dos mais importantes fatores para o sucesso do Conservatório. Alunos e professores acompanhavam alunos e professores. Participei de inúmeras apresentações, primeiro como aluno, depois como professor. Tocávamos solo, em duo, com piano, com quarteto de sopros, com trio de cordas, com quinteto de sopros. Depois, acompanhei meus alunos e coordenei grupos de música de câmara. É difícil imaginar uma vivência musical de maior riqueza.

Para além do programa estipulado para o curso formal do Conservatório, Sígrido organizava e promovia cursos extracurriculares e concertos especiais. Acompanhamos cursos de análise com H.-J. Koellreutter e de improvisação/composição com Aylton Escobar. Fizemos música de câmara sob orientação do maestro Roberto Tibiriçá, do oboísta Walter Bianchi (considerado um dos grandes cameristas da época) e da cravista Helena Jank. E participamos de encontros com músicos como o pianista José Eduardo Martins, o compositor Gilberto Mendes ou o compositor francês Philippe Manoury. Durante um ano, Sígrido conseguiu manter uma orquestra sinfônica. Sob regência dos maestros Fabio Mechetti, que também era professor no Conservatório, e Osvaldo Colarusso, a orquestra fez algumas apresentações em teatros da cidade.

O Conservatório também se distinguia por um corpo docente que reunia os principais instrumentistas atuantes em São Paulo. Na área do violão, o mestre Henrique Pinto encabeçava um time que depois contou com artistas como Paulo Porto Alegre e Edelton Gloeden. E tinha o grupo de percussão do CMBP, dirigido por Claudio Stephan, que fez um trabalho que marcou época.

No início dos anos 1980, para ganhar novos salas, Sígrido alugou outra sobreloja, na esquina da rua Bernardino de Campos com a avenida Santo Amaro, a uns 500 metros da sede da Álvaro Rodrigues. Era o “anexo”, como dizíamos. Não me lembro de ter visto o Sígrido por lá, mas um interfone possibilitava a ligação direta do anexo com sua salinha. O espaço era amplo, acarpetado e bem acabado, mas um pouco barulhento, obrigando-nos a ficar com as janelas fechadas.

Naqueles anos ele tinha iniciado um novo e ousado projeto, a Editora Novas Metas. Queria editar e divulgar livros e as obras dos compositores de seu tempo. Apesar de Sígrido ter uma clara simpatia pelas linguagens de vanguarda, seu catálogo era amplo e contemplava também os compositores de linha mais tradicional. Tinha prazer em diagramar as partituras que serviriam de originais para a impressão – e era um grande mestre no ofício. Era comum encontrá-lo, em sua salinha, decalcando cuidadosamente sobre o papel pautado cada uma das notas e indicações musicais (ainda não existiam computadores pessoais, muito menos os modernos softwares de edição). Sempre ouvindo música e fumando. Ainda guardo partituras e livros da Editora Novas Metas, de autores como Koellreutter, Sergio Vasconcellos Correia, Rodolfo Coelho de Souza, Aylton Escobar, Régis Duprat, Mario Ficarelli e José Eduardo Martins.

Formei-me no Conservatório em 1983. Desde 1980 já dava aulas de flauta, e segui ligado ao Conservatório, como professor, até o início dos anos 1990. Sígrido sempre foi um grande incentivador de minhas atividades e ajudou-me muito com recomendações e ideias quando decidi estudar música na Alemanha, em 1984. Quando voltei, em 1987, readmitiu-me imediatamente como professor – apesar das dificuldades financeiras que o Conservatório já enfrentava.

Em meados dos anos 1980, o Conservatório havia se mudado para uma ampla casa na rua Roque Petrella, próxima à esquina da avenida Santo Amaro. As acomodações eram ótimas, com uma grande área livre, um bom auditório e diversas salinhas de estudo que Sígrido havia mandado construir na parte de trás do terreno. Parecia a consolidação de seu projeto, agora abrigado em um espaço que condizia com sua importância e repercussão. E funcionou bem ainda alguns anos, formando mais uma legião de músicos e amantes da música.

 

Mas a dinâmica e o mercado cultural da cidade já não eram os mesmos. Por um lado, as universidades haviam estabelecido seus departamentos de música, oferecendo novas possibilidades de estudo para as novas gerações. Por outro, havia a concorrência de inúmeras escolas de música, que ofereciam cursos básicos de teclado, guitarra e bateria. Não era nada fácil para aquele singular Conservatório do Sígrido, com sua ambição pedagógica e alto nível de qualidade, sobreviver. Anos depois, Sígrido acabou passando o Conservatório para um grupo de professoras, que o mantém até hoje, não sem esforço, como uma boa escola de música.

Sígrido Levental morreu no último domingo, dia 29 de janeiro, aos 75 anos. Com recorrentes problemas de saúde, enfrentou muitos sofrimentos nos últimos anos de sua vida. Como diz sua filha Cláudia Levental, a música não perdeu com sua morte, mas ganhou com sua existência. Espero que Sígrido tenha ido com a consciência de ter deixado um legado indelével com seu trabalho de formação de músicos e de amantes da música, com seu trabalho para o fomento da música no Brasil. Aqueles tempos do Conservatório do Brooklin ficarão na história e na memória como um dos mais significativos e decisivos momentos da educação musical e da atividade clássica na cidade de São Paulo.

Obrigado, Sígrido, descanse em paz. Um beijão pra você!

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