Voando alto, com os pés no chão

por João Luiz Sampaio 12/09/2022

No camarim do Convento São Francisco, o maestro Fabio Mechetti faz um balanço sobre a turnê da Filarmônica de Minas Gerais. Foi um teste, ele diz, para todos, não apenas para a orquestra. Sair de casa, ir... alguém bate na porta. É o pianista Jean-Louis Steuerman. “Será que é preciso segurar o piano, tendo em vista a acústica da sala?”

O Convento São Francisco foi construído no início dos anos 1600 na encosta da colina de Santa Clara, em Coimbra. Ficou séculos abandonado e chegou a ser utilizado como fábrica de artigos de lã. Até que no início dos anos 2000 passou por um processo de restauração. E, ao seu lado, integrada ao prédio histórico, foi construída uma sala de espetáculos, onde na noite da última sexta-feira a orquestra mineira encerrou sua primeira viagem à Europa, após apresentações no Porto e em Lisboa.

A conversa entre Mechetti e Steuerman é rápida. E há entre ela e o balanço que Mechetti fazia alguma relação. Cinco dias, quatro concertos, quatro palcos diferentes. Encontrar o som ideal para cada um deles faz parte do teste a que a filarmônica se submeteu. Mas ele vai além, explica o maestro. Sair de casa, ele dizia, é um desafio. A logística, os detalhes de produção, a rotina de apresentações fora do cotidiano da Sala Minas Gerais, tudo isso testa a maturidade da instituição como um todo.

Se era um teste, a filarmônica passou com louvor. O programa escolhido para a viagem tinha como foco a música brasileira, uma vez que a turnê celebrava o bicentenário da independência. A ideia era ter uma obra concertante e outra de fôlego para a orquestra apenas. Villa-Lobos, Bachianas brasileiras nº 3 e Choros nº 6. Entre elas, Carlos Gomes, o prelúdio e a Alvorada de O Escravo – e mais Guarani e Fosca, como bis. Como homenagem aos donos da casa, a Abertura Sinfônica nº 3 de Joly Braga Santos.

Villa-Lobos pode assumir diferentes personalidades. Entre as Bachianas brasileiras e os Choros, isso fica bastante evidente. Sobre a primeira, já se conhece o ponto de partida – a mistura das técnicas composicionais de Bach com o universo da cultura musical brasileira. Sobre os Choros, diz o próprio compositor: eles são construídos “segundo uma forma técnica especial, baseada nas manifestações sonoras dos hábitos e dos costumes dos nativos brasileiros, assim como nas impressões psicológicas que trazem certos tipos populares, extremamente marcantes e originais”. 

Exigências diferentes para a orquestra. Nas Bachianas, o problema é sempre encontrar o equilíbrio entre a orquestra e o piano, como me disse Steuerman um pouco antes da estreia da turnê, na Casa da Música do Porto, na última terça-feira, no dia 6. Mas, além disso, a partitura exige outros cuidados, flutua entre momentos de explosão e outros de delicadeza quase camerística, quando o diálogo com o piano não é óbvio e se faz de uma relação entre significados que exige atenção ao caráter da música (Steuerman e orquestra, concerto após concerto, fizeram maravilhas com essa música).

Os Choros colocam outros desafios. Como escreve Fabio Zanon em seu livro sobre o compositor, aqui Villa-Lobos faz “um grande panorama de atmosferas sertanejas”. E o faz, ainda segundo Zanon, referindo-se a toda a série dos Choros, de maneira única. Afinal, coloca o músico, “a síntese, o aprisionamento de uma paisagem infinita, impossível a não ser na imaginação, evidentemente tem um caráter pessoal”. 

São ao todo, nos Choros nº 6, dezoito temas. Recriá-los de uma maneira individual, sem perder a organicidade – ao mesmo tempo, dar organicidade sem prender a música, permitindo que cada seção respire de modo particular. Não é um desafio pequeno. Assim como não é fácil achar a medida na exploração dos timbres, que se dá em especial no diálogo entre os solistas da orquestra e o tutti, repleto de contrastes, “denso e ralo, escuro e claro, texturas sensualmente adocicadas e ásperas – mudanças que correspondem ao conteúdo musical, que passa do extremamente sentimental para o irônico, do sério para o ingênuo, do sublime ao banal, do cantábile para a dança”, como anota Eeros Tarasti. 

O solo inicial de flauta por Cássia Lima, acompanhada pela percussão e pelas cordas da orquestra, serve de bom exemplo de como esses desafios foram enfrentados pelos principais da orquestra: musicalidade, técnica precisa, verve. Em uma música que parece seguir em um enorme crescendo, a cada seção a filarmônica parecia dobrar a aposta. E o resultado foi uma leitura viva, repleta de cores. 

Os Carlos Gomes, por sua vez, foram de precisão impressionante. A orquestra gravou no início do ano disco com as aberturas e passagens orquestrais do autor e ficou muito claro que esta era música que o grupo tinha nas mãos. Como é bom ouvir o Guarani bem tocado, com cara de abertura dramática, mas sem alardes superficiais. Como é interessante o tecido orquestral da Fosca, de quem a gente costuma lembrar sempre – e apenas – das inovações da escrita vocal. E O escravo? No final do século XIX, ele soa quase wagneriano – e, ao mesmo tempo, com a personalidade do compositor gravada de maneira inconfundível. Quanta novidade em música tão conhecida!

E então voltamos ao camarim em Coimbra. Mechetti é um maestro com os pés no chão. O trabalho de construção de uma orquestra é demorado e não termina nunca, não pode terminar nunca. A filarmônica vai completar quinze anos em 2023, com apenas sete deles em sua própria sala, o que significa a possibilidade de ampliar seu repertório, o número de apresentações e de refinar sua sonoridade. Difícil discordar. Mas a turnê deixou claro, na Europa, que a filarmônica é um dos projetos culturais mais sólidos não apenas do Brasil como da América Latina. Minas Gerais é hoje um centro sinfônico de enorme relevância. Precisa ser celebrado como tal – e ter apoio para seguir adiante.

[João Luiz Sampaio viajou a Portugal a convite do Instituto Cultural Filarmônica]

Fabio Mechetti e Jean-Louis Steuerman durante concerto em Coimbra [Divulgação/João Duarte]
Fabio Mechetti e Jean-Louis Steuerman durante concerto em Coimbra [Divulgação/João Duarte]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.