Anitta e o mundo em que vivemos

por Nelson Rubens Kunze 08/04/2022

Temos de fazer as sinfonias de Beethoven conversarem com a atualidade. Ou restaremos como no Titanic, ouvindo “música clássica” enquanto o navio afunda....

Na manhã do dia 25 de março, Anitta, cantora pop brasileira, alcançou o primeiro lugar no Spotify, com 6,4 milhões de streams (o que significa que naquele momento 6,4 milhões de pessoas no mundo inteiro estavam ouvindo a sua música). Ela é a primeira brasileira a alcançar a marca. A música que a levou ao topo chama-se Envolver e é cantada em espanhol – é o que chamam de “reggaeton”, uma balada dançante, comercial, de levada latina. A letra fala de sexo, álcool, gozar, derreter, beber, fumar e por aí vai. Tudo meio explícito, mas não é propriamente um funk. Ao contrário, a música até traduz uma certa empatia e “delicadeza”, tem um apelo “envolvente” mesmo (clique aqui para ouvir).

Claro que as mídias sociais fervilharam (são elas também os motores que impulsionaram os streams de Anitta). Na minha bolha do Facebook, que naturalmente não tem muitas intersecções com bolha da Anitta, as manifestações iam de desaprovação total até elogios. Regina Porto, ex-diretora da Rádio Cultura FM e ex-editora da Revista Bravo!, publicou um post em que, após citar Mario de Andrade, escreveu: “[...] A miséria da sua música é tamanha (fãs, mídia e lacração especializada: sorry) que tudo o que ela faz fica nisso: 2-3 acordes, 1 batidão e solos abundantes de traseiro. Se há alguma variável no clipe que chegou ao topo do Spotify é que dessa vez a ‘girl from Rio’ canta em espanhol de Latino-America, português opcional nas legendas. E o que ela performa é um pop latino tão raso, tão ralo, tão Miami e adjacências, que só se justifica como trilha para ambientar a cena porn-love da sua coreografia em duo”. (Aqui vale um esclarecimento: Regina faz sua avaliação a partir da “obra de arte total”, que é o clip de Envolver publicado no YouTube, e que acrescenta uma camada extra de vulgaridade à música “pura” que se ouve no Spotify.) Já Cleber Papa, ex-diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo, afirmou: “Parabéns à Anitta pelo 1º lugar no top 10 do mundo. Parabéns! E que continue abrindo portas. Temos muito talento no Brasil. Grandes criadores, bailarinos, cantores e todo o staff que cerca alguém como ela. Palmas e reverências. Anitta é um exemplo de força e reinvenção”. 

Creio que por formação e trajetória eu esteja mais próximo de Regina Porto, que é uma arguta analista da cultura contemporânea. Mas, como geminiano que sou, também reconheço muita razão no que Cleber Papa escreve: a moça tem uma baita competência e chegou lá! 

Para além de nossos julgamentos, se aprovamos ou não, vale a pena refletir sobre o fenômeno. Primeiro, a constatação de que avaliações “estéticas” não são régua para uma criação que faz parte de uma indústria cultural com forte componente social e comportamental – quem está ouvindo Anitta encontra ali, mesmo que inconscientemente, aspectos com os quais se identifica. Segundo, ainda que sejam milhões de ouvintes, parece que não se trata de uma massificação, já que cada um dos que estão na lista dos 10 mais (ou dos 50 mais) do Spotify tem também milhões de (outros) ouvintes. Terceiro: é esse o mundo em que vivemos, e ele é tão ruim ou bom quanto o que existia antes (talvez a principal diferença resida na velocidade e na dimensão com que as coisas acontecem...).

Mas o que mais chama a atenção – e acho que é isso que nos impacta no mundo da “cultura clássica” – é a conexão que Anitta e congêneres têm com os nossos dias. E isso lhe dá uma incontestável legitimidade social. Podemos aprender algo aí. Se nunca teremos milhões de streams de música clássica, deveríamos sim buscar novas ligações e formas de identificação com o mundo em que vivemos. Saber dialogar com o público, aquele que já está próximo dos concertos ou aquele novo espectador a ser conquistado, de forma moderna, contemporânea – no modo de fazer e no modo de apresentar nosso repertório. E fazer isso sem perder o foco das especificidades do universo clássico.

A nossa atividade não pode ficar reclusa como em um museu insistindo no papel único de mero difusor do patrimônio histórico. É uma posição pobre. E também falaciosa, pois qualquer interpretação atual da música do passado (Bach, Beethoven, Tchaikovsky ou Stravinsky) é uma recriação “de hoje”, e quanto mais viva for, melhor e mais sentido fará. Veja o que acontece com a compreensão da música antiga, pré-clássica, que a cada 20 ou 30 anos é totalmente renovada. Ou pegue uma sinfonia de Beethoven interpretada por Karl Böhm e compare com o que se faz hoje em dia. 

Não se trata de “implodir os teatros de ópera”, como queria Pierre Boulez nos anos 1980 – não tem nenhum problema que essas instituições sejam mesmo repositórios do grande patrimônio musical do Ocidente, é essa a missão delas. A questão é que elas são, ou deveriam ser, bem mais do que isso (como aliás o são, ou deveriam ser, também os museus de nossos dias...).

A notícia boa é que já há uma nova maneira de enxergar o papel das orquestras sinfônicas e das casas de ópera na contemporaneidade, e essa nova visão está por toda parte. No Brasil, uma das vertentes mais poderosas são os projetos educacionais e de inclusão social, como o Neojba na Bahia ou o Instituto Baccarelli aqui em São Paulo.

E essas novas tendências também já há alguns anos começam a se infiltrar nas instituições mais tradicionais, como demonstra uma maior busca por repertórios pouco executados, as encomendas de novas obras ou a intersecção com outras linguagens artísticas. E, também, uma nova postura diante de questões como diversidade, racismo ou de emergências sociais (tipo pandemia ou guerras). 

É essa nova visão que levou a Filarmônica de Nova York, por exemplo, a criar um departamento voltado para a promoção da diversidade. Ou que fez com que diversos organismos culturais tenham desenvolvido projetos de solidariedade social durante a pandemia, para ajudar artistas ou vizinhos vulneráveis. Temos de construir, na área da música clássica, um novo paradigma que busque relevância social. Novos públicos surgirão se a música clássica se relacionar com os nossos dias.

Não é uma tarefa fácil, mas é inadiável. O mundo atravessa desafios que ameaçam a sobrevivência da espécie humana. Como a cultura e a criação artística são ferramentas potentes para prospectar (e inventar) saídas e novos horizontes, devemos assumir a nossa responsabilidade e impulsionar as mudanças na nossa atividade. 

Temos de fazer as sinfonias de Beethoven conversarem com a atualidade. Ou restaremos como no Titanic, ouvindo “música clássica” enquanto o navio afunda...

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Anitta em seu clipe ‘Envolver’ (reprodução YouTube)
Anitta em seu clipe ‘Envolver’ (reprodução YouTube)

 

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Comentários

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Caro Nelson,
Como sempre estamos (eu e você) atentos a provocações. Pois é. A Anitta é uma provocação boa. Há algum tempo, dois ou três anos, mesmo não sendo um frequente membro da Bolha do Facebook como você situa corretamente, li algumas coisas de um cantor de ópera que me pareceram uma posição machista, inoportuna e desrespeitosa com relação à Anitta, reduzindo-a a uma ameba indecente (esta foi minha interpretação). Reagi a isto de forma veemente e comentei sobre a importância dela.
Neste momento histórico da música pop brasileira, apenas cumprimentei a Anitta utilizando este canal da Bolha muito por interesse em de fato chamar a atenção de alguns amigos ainda desatentos acerca deste fenômeno (ela com certeza sequer chegará perto deste texto que escrevi).
Isto. Anitta é um fenômeno inteligente.
O UOL publicou um texto (https://economia.uol.com.br/empreendedorismo/noticias/redacao/2018/10/0…) em 2018. Chamo a atenção para a natureza dos comentários e, se o seu leitor tiver estômago, verá os absurdos de opinião e a baixíssimo nível das adjetivações a que esta artista foi submetida.
Expressando-se num inglês impecável (olha aí, moçada do contra), hoje, 8 de abril de 2022, Anitta dá uma entrevista para o New York Times (https://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,o-preconceito-machuca-di…) em que fala de... preconceito.
Com 6,4 milhões – não vou repetir – de reproduções de apenas uma música, é inegável que esta moça merece mais atenção e respeito (merecia se não tivesse nenhuma reprodução em qualquer canal).
Ok, Nelson, um e outro vão dizer que o funk, a bunda, o rebolado... Bem, valho-me de outro vídeo – uma aula de funk – de um mestre e hoje doutor em funk, o professor Thiago Alves de Souza, nada mais, nada menos que uma análise musical surpreendente do hit Vai Malandra, lançado por Anitta em 2017 e que serviu de impulsionador de sua carreira internacional (https://www.youtube.com/watch?v=oYznNuZwyrw). O Thiago é um dos caras mais interessantes e audaciosos que conheci nestes últimos tempos, apenas como parênteses.
Entendido que estamos falando de algo que precisa ser observado com outros olhares, vamos à sua provocação (boa, hein, Nelson? Parei um monte de coisa que estou fazendo – são 20:50 momento em que dedilho este texto, porque considero o que você escreveu de extrema importância).
Anitta lança Vai Malandra e é projetada mundialmente. Continua produzindo, se aperfeiçoando. Detalhe importante: a Anitta canta afinado de fato e não de pós-produção. No início, vejam os clips mais antigos, a moça fazia tudo muito mais intuitivamente e hoje é técnica. Claro que tudo isto é fruto de muito trabalho, tanto quanto o inglês, o espanhol e outras possibilidades que poderia perfeitamente projetar. Interessante será vê-la cantando em francês, árabe, alemão. Ela tem 28 anos e, portanto, muito tempo para desenvolver.
Sobre isto, vejamos Boys Don’t Cry (https://www.youtube.com/watch?v=PkzJgGZBFDg), dirigido pela Anitta e pelo Christian Breslauer. Quem é este cara? Diretor de um dos melhores clips de Lis Nas X (Hein?) Ok. Divirtam-se com outro clip deste cantor que não é do dirigido pelo Breslauer ( https://www.youtube.com/watch?v=w2Ov5jzm3j8 ) com a participação hilária do Chris “Tapa na Cara” Rock.
Escrevo tudo isto para dizer que a Anitta lançou Boys Don’t Cry em 27 de janeiro de 2022, no programa do Jimmy Fallon (Tonight Show) em primeira exibição. A busca do seu nome no Google cresceu 400% em 24 hs (fonte Estadão). Disse que buscou uma referência na banda da sua adolescência (Panic! At the Disco).
Como assim? Anitta fazendo isto? 26 milhões de visualizações só no Youtube hoje, 8 de abril? Mas esta música não parece Anitta. Lembra muita coisa, graficamente a abertura lembra as capas dos gibis “Journey into Terror” ou qualquer coisa do tipo Nightmare Histories. Não lembra os Michael Jackson dos bons tempos (reveja Smooth Criminal só pra dar mais uma risadinha)?
Sem brasileirices é igual ou melhor que as grandes estrelas pop do planeta.
Mas, vamos de Anitta mais um pouquinho só.
Girl From Rio é uma das coisas mais divertidas do pop mundial (legal falar “pop mundial” para uma artista nossa, não é?). O clip é deliciosamente hilário e refrescante. O Brasil fake hollywoodiano está todo ali estampado e, de repente, irônica e inteligentemente, uma porta se abre para o Brasil do piscinão, da nossa mais pura beleza tropical. É raro ver um filme tão cuidadoso na produção em que nada é escrachado, nós estamos todos ali, sem um papel jogado na areia, sem nenhuma imoralidade que nos transforme em paraíso do turismo sexual, tudo muito bem cuidado – coisa que nenhum dos ministérios do turismo atuais seria capaz de reproduzir por falta de inteligência emocional. Acabei de ver agora o clip (não conhecia) e me diverti muito com tudo isto. É sábio, bem pensado. Não poderia esperar menos de uma artista que é do conselho do Nubank, da Skol e está envolvida em tantas questões, inclusive com tempo de uma briguinha política ressaltando que não tem nada em lei Roaunet, que não aceita cala-a-boca no Lollapalooza.
Ah, o clip https://www.youtube.com/watch?v=CuyTC8FLICY para quem quiser se divertir. Percebi hoje (li não sei onde e fui conferir alguns), mas a Anitta não repete cabelos em nenhum clip, o que não deixa de ser também divertido lembrar que Will Eisner – o gênio falecido dos quadrinhos – também não repetia as letras dos títulos do The Spirit. A lista é grande. Coisa de pop.
Nelson, você escreveu uma das coisas mais importantes de todo artigo e é a esta provocação que me refiro desde o início: “É uma posição pobre insistir no papel de mero difusor do Patrimônio Histórico”. Nada mais verdadeiro. Como você sabe, sou um estudioso das relações dos Museus com a Sociedade. Tenho dedicado um tempo enorme para entender a cada dia a maravilhosa e surpreendente mudança que os principais museus do mundo têm promovido nas relações com sua audiência.
Nós precisamos chegar à mesma conclusão que vários museus do mundo e alguns do Brasil chegaram. É preciso alargar as relações, olhar o que cheira a novo, remexer as caixas com naftalinas.
Aboli a palavra música erudita e música de concerto do meu linguajar cotidiano. Agora voltou a ser música clássica. É assim que o uberista, o porteiro do meu prédio e, de resto, muitos dos meus amigos, entendem o que fazemos. Do mesmo modo que você, geminiano, e eu, taurino, entendo que estamos diante de um fenômeno que provoca nossa mudança.
Ora, padrões de interpretação de uma música escrita no século 17, diziam à sua comunidade na linguagem e nos códigos daquela época. Hoje, com o habeas corpus preventivo para a academia, nossos criadores precisam buscar outras maneiras de interpretar aquele repertório, descobrir outras coisas que podem ser vistas porque há uma avidez por novos caminhos. Ligeti, Berio, Tan Dun, Verdi, Wagner, Gomes, Miranda, Ripper, Crowl estão aí para serem revistos, reinterpretados.
Tenores precisam continuar sendo preparados para cobrir uma orquestra, para encantar 3.000 pessoas num teatro. Aliás, precisamos mudar a escala dos nossos teatros, não é? Ou usar tecnologias que permitam atingir multidões. Em breve, inaugura-se em São Paulo o Vibra SP, uma casa enorme, renovada com foco em sustentabilidade e outras necessidades contemporâneas, uma casa de shows impecável. Como ocuparemos estes espaços com os musicais, com os concertos, a ópera? Se não lá, onde? Está na hora de criarmos novas formas de pensar. Quem não gostaria de ver a impecável Luciana Bueno, dona de voz exemplar e artista de excelência (falo dela citando todos os outros nomes de igual relevo) gravando álbuns, ocupando espaços em vários níveis, sendo tratada em condições de carreira à altura do que pode representar.
Precisamos desenvolver e estimular programas e projetos que modifiquem o cenário atual. Não dá mais para esperar que artistas da música clássica não busquem interpretações próprias, soluções do nosso tempo.
Vamos continuar a viver confinados no barril do Chaves, só com a mãozinha pra fora e dois olhinhos esbugalhados esperando a hora de nos escondermos de novo?
Você foi muito hábil ao ressaltar a importância dos projetos sociais tais como Neojiba e Baccarelli como uma resposta contemporânea a parte de nossas necessidades. Também quando fala em tornar temas como diversidade, sustentabilidade ambiental, racismo, participação nas discussões estruturais das políticas sociais, integrantes primários da nossa atividade. Ora, Nelson, sabemos que Cultura é isto e você tem razão a defender que este foco seja prioritário neste momento.
Como taurino (o Quiroga, que leio diariamente e gosto muito, me perdoe: não acredito em horóscopo), também acredito como você que novas intersecções são necessárias, abrir portas, ouvir mais outras pessoas, ajudar a dar voz a quem ainda vive em silêncio (Caramba... Para que trabalhamos na Cultura? Não é para evidenciar as diferenças? Para debater e buscar caminhos?).
Conversando com o Thiago Alves de Souza, sobre o funk nesta semana, ele me lembrou de uma expressão usada pelo meu guru Umberto Eco que falava de uma tal humildade intelectual.
Concordo integralmente. Não podemos ter a arrogância de imaginar que temos todas as respostas, temos que ter a humildade intelectual de que precisamos aprender a saltar no escuro, de buscar durante o naufrágio do Titanic (Nelson, já batemos no iceberg!!!) saídas deste mar tenebroso.
Há um efeito Anitta em curso. Vamos aplaudir a moça, ouvir atentamente o que ela está fazendo, qual a próxima encenação dela, aprender o que podemos aprender. Se o nosso tempo é esse, o que podemos fazer para nos inserirmos nele, naquilo que sabemos fazer? Reduzir a artista é inaceitável e não me parece a coisa mais inteligente a fazer.

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