Como mulher num meio profissional cuja desigualdade de gênero é gritante, especialmente quando se trata de cargos de liderança, a regente Muriel Waldman acostumou-se a buscar caminhos alternativos. Começou na regência coral, área tradicionalmente mais receptiva à liderança feminina. Mas seguia com vontade de fazer carreira como regente orquestral e, apesar de participar ativamente do circuito, frequentando festivais e cursos – foi aluna de Eleazar de Carvalho por dois anos –, o máximo que conseguia eram aparições esporádicas como regente convidada.
Durante um período, atuou como assistente do maestro João Maurício Galindo na Orquestra Jovem do Estado. Observou que, nos concursos anuais, o número de jovens que ficava de fora da seleção daria para formar outras duas orquestras, e entendeu que havia espaço para mais conjuntos em São Paulo. Esse dado, somado a sua própria dificuldade em conseguir atuar regularmente na regência orquestral, motivou a formação, em 2008, da Orquestra de Cordas Laetare.
O conjunto nasceu com o objetivo de tocar compositores esquecidos ou obras pouco divulgadas de compositores conhecidos. Também se propôs a sair do centro da cidade, onde se concentram a maioria das salas de concerto, e apresentar a música clássica aos jovens, tocando em espaços fora da região central. O projeto se viabilizou por meio de um edital do ProAC, mas seguiu mesmo quando o apoio acabou. “Vamos para 13 anos de atividades e a orquestra nunca parou de se apresentar, a não ser pela COVID-19”, conta Waldman.
“Faço questão que seja uma orquestra diferente. Músicos profissionais, depois de algum tempo, ficam desesperançados. Quero que em nossa orquestra cada um tenha a sua voz e possa manifestar o que acha que vai favorecer seu desenvolvimento. É uma orquestra de jovens profissionais, recém-formados, que levam a sério a sua própria profissão, seu desenvolvimento e sua missão enquanto músicos e cidadãos”, ela explica. Atualmente, a Orquestra Laetare vive de doações, que variam de R$10 a R$500, de um grupo de amigos da orquestra, bem como de cachês de apresentações. Com as dificuldades econômicas atuais, o grupo tem sido mantido no limite, incluindo uma equipe enxuta de três pessoas: além da própria regente, uma arquivista e um montador.
Pesquisar obras de compositores esquecidos acabou levando Muriel Waldman a dar um passo inevitável: estudar o repertório das mulheres compositoras do passado e do presente. Ela diz que, antes de iniciar, conhecia algumas coisas de Fanny Mendelssohn e Clara Schumann. Ainda assim, descobriu que havia muito poucas obras delas gravadas. A compositora Nilcea Baroncelli – pioneira no Brasil em estudos de mulheres compositoras – lhe indicou alguns caminhos. “Meu dever e o da orquestra é trabalhar com a obra dessas compositoras. Não só para fazer uma justiça histórica, mas também porque são obras bonitas e de muita qualidade. É uma pena que quase não se ouça”, afirma.
A pesquisa foi revelando um número expressivo de compositoras, incluindo algumas surpresas, como Clara Gottschalk Peterson (1837-1910), irmã do pianista e compositor Louis Moreau Gottschalk, conhecido por aqui por sua Grande fantasia triunfal sobre o hino nacional brasileiro; ou ainda a venezuelana Teresa Careño (1853-1917), que para além de obras de salão convencionais, deixou peças complexas que exploram a harmonia do século XX.
A maior parte das compositoras do século XIX escreveu obras para pequenas formações, especialmente piano solo e canto e piano, já que esse era um tipo de música possível de ser executada em casa, em pequenas reuniões. Por que uma autora se aventuraria numa empreitada pesada como a composição de uma sinfonia, uma vez que a obra nunca seria apresentada? Para driblar essa limitação, Waldman passou ela mesma a fazer arranjos das obras para a formação de orquestra de cordas. Ao apresentá-las nos concertos, a resposta do público era sempre calorosa.
Em 2016, foi a vez da Orquestra Laetare dar um passo importante: gravar seu primeiro CD. “Um amigo fez as contas comigo e vimos que dava para enfrentar a despesa de gravar se reduzíssemos drasticamente os gastos. Depois, as despesas poderiam ser pagas com a venda do disco. Achamos que o investimento valia a pena”, conta Muriel. Quanto ao repertório, ela não teve dúvidas: obras de compositoras. Clara Schumann, Louise Farrenc, Amy Beach e Chiquinha Gonzaga estão no disco “Mulheres compositoras em concerto”, que ainda abre espaço para autoras contemporâneas: a inglesa Christine Snowdin, a italiana Eliana Mangano, a israelense Tsippi Fleischer e a brasileira Silvia de Lucca. O CD está disponível para audição nos serviços de streaming.
O disco não encerrou a pesquisa sobre o tema; ao contrário, a aprofundou. Muriel Waldman tem sido procurada por compositoras contemporâneas que lhe apresentam sua produção. A sequência do trabalho pode ser vista nas apresentações da Orquestra Laetare, incluindo a que acontece hoje, dia 30 de novembro, às 20h. Todo dedicado à produção feminina, o programa traz duas estreias mundiais: Por que ainda tem gente morrendo de fome?, da compositora russa Lena Orsa, “uma música impactante, profunda e que revela a revolta e o sentimento de impotência face à situação”, explica Muriel. Já A tempestade é uma peça minimalista da jovem compositora francesa Magali Martin.
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Comentários
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Muriel Waldman, tive a…
Muriel Waldman, tive a enorme alegria de ser aluna dela na Universidade Livre de Música há muitos anos, na época em que era regente do Coral. Foram anos mágicos, porque apesar de amar a Arquitetura e seguir minha carreira, música sempre me arrebatou. Fizemos inúmeras apresentações, no Memorial da América Latina, Sala São Paulo...
Muriel sempre muito profissional, competente e acolhedora. Foi uma época incrível. Muita saudade...