No mundo inteiro importantes orquestras sinfônicas ampliam a sua missão para além de sua função precípua de difusor do grande repertório histórico
Em 21 de dezembro passado, o pianista Ricardo Castro, idealizador e diretor do Neojiba – um dos mais importantes projetos de inclusão social pela música desenvolvidos no Brasil – publicou, indignado, um post em sua página de Facebook com duras críticas a um programa de música popular-sinfônica que a Orquestra Sinfônica da Bahia apresenta no próximo sábado, intitulado “Osbrega – Concerto do Amor” (Osbrega como sendo uma contração de Osba com brega). Após reproduzir uma definição de “brega” contida no livro Verdade tropical de Caetano Veloso – “palavra da gíria baiana, hoje usada como adjetivo, mas na origem um substantivo chulo que significava ‘puteiro’, dizem que a partir do nome Padre Manuel da Nóbrega de uma rua de zona de prostituição de Salvador ou Cachoeira, sobre cuja placa quebrada restavam apenas as duas últimas sílabas do sobrenome do sacerdote” –, Castro afirma que “quando uma orquestra sinfônica estadual, depois de conquistar milhões inéditos para seu orçamento e poder contratar músicos excelentes, escolhe esse ‘título’ para promover um concerto [...] estamos certamente entrando em um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”.
Dois dias depois, Ricardo Castro postou nova mensagem com o título “Público X privado: uma confusão com consequências graves para ambas as partes”, em que afirma que “colocar com frequência músicos altamente qualificados e pagos com recursos públicos para tocar um repertório que poderia ser tocado melhor do que eles até por uma orquestra de jovens bolsistas pode ser considerado prevaricação, ‘um dos crimes praticados para satisfazer interesse ou sentimento pessoal’”. No mesmo post, Castro reforça que, “no caso em questão, a orquestra é pública e os músicos são renumerados pelos impostos dos mais pobres (rico não paga imposto no Brasil). E em um estado pobre como a Bahia, uma orquestra desse porte só se justifica porque existe um repertório que ninguém mais pode defender, proteger, divulgar e que é patrimônio da humanidade”.
A polêmica acabou chegando às páginas do jornal baiano O Correio, que conversou com o maestro Carlos Prazeres, regente titular e diretor artístico da Osba. Na reportagem, Prazeres se diz preocupado com o futuro da música de concerto afirmando que “a Osba tem a função de preservar artisticamente a sociedade baiana e de conversar com ela. Não pode ser um disco voador vienense pousado em terras baianas”. Defendendo uma programação plural que forme novos públicos, Prazeres é enfático: “Não temos preconceito elitista. Pegar uma ‘elite’ que detém o poder do conhecimento e da cultura faz ela ficar para sempre como elite e o pobre, sempre pobre. A elite precisa se abaixar um pouco para conversar com os outros”.
Desde sempre, o argumento de que a música clássica seja elitista dá margem a muita confusão. Não creio que a atividade clássica seja intrinsicamente elitista, como dá a entender Prazeres. Ela está associada, claro, a uma história centenária, mas nem por isso é exclusiva de “eruditos” ou especialistas, basta sensibilidade e audição ativa.
O problema da pouca adesão aos clássicos não é o de um suposto elitismo. Creio que o problema seja, por um lado, a falta de divulgação, contato e acesso da população aos concertos clássicos. E, por outro, a falta de um ambiente cultural propício que deveria ser proporcionado desde a infância: seria altamente desejável, como o setor reclama há anos, que a música clássica voltasse a ser incorporada à grade da escola fundamental.
A polêmica em torno do programa da Osba não é nova e revela um desafio que permeia (ou deveria permear) todos os equipamentos culturais financiados pelo estado e que carregam uma responsabilidade pública: como fazer o seu produto cultural chegar ao maior número possível de pessoas. O desafio parte de um dilema, que em uma situação limite se coloca assim: de um lado, a orquestra sinfônica com um repertório clássico criterioso, muitas vezes de grande complexidade, em interpretações historicamente informadas, tocando para um público entendido e reduzido (se tudo der certo, para algumas poucas milhares de pessoas); de outro lado, a mesma sinfônica fazendo um repertório pop ou de trilhas de cinema – ou mesmo arranjos de hits clássicos –, de fácil aceitação popular, em praças públicas, para muitas milhares (milhões) de pessoas.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diria o bom-senso. E o bom-senso também procuraria reconhecer cada situação específica. Claro que Ricardo Castro e Carlos Prazeres conhecem o estado da Bahia muito melhor do que eu, mas imagino que ali, onde a música clássica também tem de conviver com uma das mais ricas expressões da cultura popular brasileira, deve haver fortes pressões que influenciam o trabalho de uma orquestra sinfônica dedicada ao repertório clássico. Não sei julgar se o programa Osbrega, por seu caráter apelativo, ultrapassa a linha do aceitável, mas é a busca deste equilíbrio que está em discussão na polêmica da Osba. E ideias arrojados e ousadas também fazer parte disso.
Apesar de eu me identificar absolutamente com a posição de Ricardo Castro, é bom recuar e procurar uma visão mais panorâmica da questão. Assim, mesmo acompanhando de longe, creio que é possível reconhecer um trabalho valoroso que o maestro Carlos Prazeres vem desenvolvendo na Bahia, com a Osba, já há mais de 10 anos. Em uma consulta rápida ao Site CONCERTO, por exemplo, vejo que no último ano, ao lado de suas programações populares, a Osba manteve também uma ativa programação clássica interpretando compositores como Brahms, Reinecke, Bruckner, Mendessohn, Strauss, Fauré, Prokofiev, Villa-Lobos, Mahler, Elgar, Messiaen, Cesar Franck, Bach, Mozart, Tchaikovsky, Dvorak, Schoenberg, Gnattali, Hindemith, Francisco Braga, Bartók, Arvo Pärt, Britten, Chausson, Kodaly, Ravel, Puccini... Não é pouca coisa. E mais, é uma lista rica e diversificada!
Em 2021, escrevi aqui neste espaço um texto sobre o filme “Abraço no tempo”, realizado pela Orquestra Sinfônica da Bahia em conjunto com o Balé do Teatro Castro Alves, que juntou Beethoven e Caetano Veloso. Fiquei empolgado com a intersecção de linguagens e com o emocionante registro daquele momento de reclusão na pandemia.
Ali também citei a entrevista que Camila Fresca fez com Carlos Prazeres publicada na Revista CONCERTO em 2018, em que ele afirma: “Cheguei aqui [na Bahia] com uma mentalidade típica do Sudeste brasileiro, procurando copiar os modelos que encontrei no Rio de Janeiro, em São Paulo ou mesmo em Berlim. Conviver com os baianos, participar ativamente de suas festividades, foi algo que mudou radicalmente meus alicerces. Ainda mais nos períodos de maior dificuldade da orquestra, quando precisava manter a fé de que as coisas dariam certo, busquei saber como a Bahia vive a cultura e como a orquestra pode servir a essa sociedade tão especial, tão mística, tão sábia. Que a Osba jamais seja apenas um reduto de confraternização das elites. Que ela chegue a todas as raças, todas as classes sociais, todas as faixas etárias. Esse foi meu pedido, e acho que estamos no caminho certo”.
No mundo inteiro, instituições como a Osba, que são organismos caros, mantidos pelo estado, que atendem a públicos reduzidos em salas de concertos, estão – ou deveriam estar! – em um processo de “ressignificação”, repensando e ampliando a sua missão para além de sua função precípua de difusor do grande repertório histórico. A tarefa está na pauta de instituições como a Filarmônica de Berlim, Ópera de Paris, Filarmônica de Nova York, Filarmônica e Ópera de Los Angeles ou da Orquestra de Câmara Alemã de Bremen. Como trazer novos públicos, mais diversos e mais jovens? Como fazer a orquestra participar dos debates e das questões contemporâneas? Como manter uma programação criativa e ambiciosa, que repercuta e não afaste a audiência? Como contribuir para a educação e formação da sociedade? Como promover a diversidade na instituição e em sua audiência? Como reforçar a conexão da orquestra com a comunidade? Qual é o papel das transmissões digitais?
Carlos Prazeres é um dos maestros brasileiros mais atentos a essa realidade e em seus projetos tem buscado respostas a essas questões. Acho complicado colocá-lo contra a parede sob a suspeita de prevaricação (*).
Nesse momento – em que há muitas perguntas e poucas respostas que não sejam meras suposições –, seria bom se pudéssemos reconhecer em inciativas como da Osba e do maestro Carlos Prazeres – por mais irreverentes que sejam – também uma contribuição à tarefa inadiável de reinvenção da tradicional instituição orquestra sinfônica profissional.
(*) Após a publicação deste texto, Ricardo Castro esclareceu que, em relação à prevaricação, ele se referia a funcionários que trabalham no governo. Castro emendou o seu post no Facebook com o seguinte esclarecimento: (Me refiro, no caso, às pessoas que trabalham nos órgãos da administração pública, que assinam contrato com a OS).
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Comentários
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Caros, Primeiramente,…
Caros,
Primeiramente, parabéns a todos pela importante discussão. Como gestor artístico de sinfônica no NE, gostaria de dar minha opinião. Sinceramente, a meu ver, a lógica é completamente inversa àquela descrita por alguns. Para nós, só há uma uma saída: a orquestra só mantém sua verba e reconhecimento se tiver público, se mexer com a sociedade local - e digo sociedade local não a “elite cultural”, mas sim o público em geral. Se no eixo SP/RJ/BH essa “elite cultural” é pujante o suficiente para encher as temporadas das orquestras, ou há recursos para maciça divulgação de temporadas em meios variados, em outras praças isto absolutamente não ocorre.
Tenho regido a OSBA com frequência, e posso atestar que é sim uma das melhores orquestras desse país, com cuidado artístico tremendo, temporada recheada de grandes obras e realizações. Se concertos “extra” são feitos para angariar público e inserções na imprensa, isto me parece incrível, mesmo porque desenvolve-se um entretenimento de bom nível aliado a um enorme ganho midiático, o que abre novas fronteiras, sempre.
Nós, em Sergipe, fizemos tais concertos também, e vejo que muitas orquestras têm feito, com muito êxito. Até a Osesp fez nas últimas temporadas.
Creio que cada praça sabe das suas necessidades para sobreviver aos percalços, e que os gestores têm suado a camisa para levar as temporadas com êxito. Nada é simples, nada é fácil.
Parabéns Carlos e parabéns à OSBA! Vida longa! E parabéns a todos aqueles que constroem a vida orquestral no Brasil.
Acho louvável a atitude do…
Acho louvável a atitude do maestro Carlos Prazeres. Quem dera todos os maestros e programadores tivessem sua mentalidade. As pessoas precisam entender que uma orquestra mantida com dinheiro público deve atender a toda a comunidade. Isso não se resolve somente com ingressos baratos ou gratuitos. Isso também se resolve com a diversificação do repertório e com a ampliação dos espaços de performance. Acho que há um equívoco em achar que uma orquestra sinfônica deve tocar somente a música “clássica” ou dos “grandes mestres”. Uma orquestra é apenas um grupo musical. Existe uma infinidade de possibilidades de explorá-la para além da reprodução do repertório canônico, embora, obviamente, tal repertório não deva ser desprezado. A música de concerto não é, em si, elitista. É apenas música como outra qualquer. Mas certos discursos em torno dessa música, colocando-a como superior a outras músicas, isso sim é elitista. E é uma visão estreita sobre a relação que as pessoas têm com a música. Parabéns ao maestro Carlos Prazeres!
Parece que este é um…
Parece que este é um problema genético! O outro Prazeres que dirige a Orquestra do Theatro Municipal do Rio abre as apresentações deseducando a plateia, incentivando aplausos entre os movimentos das peças apresentadas! Assim, em vez de educar, o Maestro embarca num populismo desvairado que não vai agregar novas plateias, mas com certeza afastará as existentes.