Eu havia escrito aqui, neste Site CONCERTO, outro dia, sobre o fabuloso filme Katerina Izmailova, dirigido por Mikhail Shapiro em 1967, e que faz uma simbiose com a ópera de Shostakovich.
Não creio que exista muita bibliografia sobre o compositor no Brasil. Há o Shostakovich, vida, música, tempo, de Lauro Machado Coelho, publicado pela Perspectiva em 2009. Lauro, em quem não é possível pensar senão com grande afeto, grande admiração e muitas saudades, era um apaixonado entusiasta do grande músico russo, e seu livro revela essa paixão em 500 páginas de pesquisa rigorosa. É um estudo indispensável.
Sem dúvida, porém, a primeira obra consagrada a Shostakovich no Brasil – e também no mundo – foi Dmitri Shostakovich; the life and background of a Soviet composer, de Victor Seroff, publicado em Nova Iorque no ano de 1943. Seroff foi um musicólogo e autor de biografias norte-americano de origem russa.
No Brasil, saiu apenas com o nome do compositor no título em 1945, pela Empresa Gráfica O Cruzeiro. Quem traduziu foi Guilherme Figueiredo, escritor hoje um pouco esquecido imerecidamente.
Figueiredo, notável teatrólogo, “fascinado pelo comunismo” como ele próprio declarou, tem, entre suas excelentes peças, A raposa e as uvas, apresentada em todo o Brasil por Sergio Cardoso. Funcionou como catalizadora de resistência na época da ditadura militar brasileira quando foi retomada por Nidia Licia em várias cidades. Fez sucesso na Europa, sobretudo nos países da cortina de ferro, além da América Latina. Arrebatou um monte de prêmios.
Guilherme Figueiredo escreveu também a letra da celebérrima canção Maria Chiquinha, que muita gente pensa ser obra do folclore brasileiro. Ah, sim, foi irmão do General João Figueiredo, o último chefe da nação durante a ditadura militar. Os irmãos eram brigados.
Bem: Guilherme Figueiredo e Mario de Andrade ficaram muito amigos desde 1939, quando o criador de Macunaíma foi morar no Rio de Janeiro. Ambos estavam bastante próximos do partido comunista nesse momento.
Guilherme Figueiredo explica: “A tradução deste livro se deve ao meu desejo que Mario de Andrade o prefaciasse”. A Sinfonia nº 7 de Shostakovich, símbolo de oposição ao nazismo, causara impacto no Ocidente. A partitura havia sido enviada por microfilme de maneira rocambolesca a Nova Iorque, onde Toscanini a interpretara. Tudo isso era objeto de notícias e de debates.
Mario de Andrade se preocupava então com o sentido social das obras de arte, sobretudo da música, para ele a mais “socializante” das artes. Voltara-se para a o gênero da ópera, que poderia ter um papel revolucionário, a ponto de escrever um libreto muito elaborado que tinha por título O café. Hans-Joachim Koellreutter o poria em música muitas décadas depois.
O prefácio de Mario de Andrade é um longo ensaio. As ideias nele expostas revelam as paixões dominantes nos debates estéticos e musicais do período, vazadas em inteligência brilhante. Inteligência que não conseguiu, infelizmente, livrar-se de fortes inflexões partidárias, numa ortodoxia assumida e assustadora. Sobre a condenação tremenda feita pelo Pravda depois que a ópera Lady Macbeth do distrito de Mtsensk de Shostakovich obtivera enorme sucesso na União Soviética e no Ocidente, durante o período mais negro das perseguições estalinistas, Mario de Andrade escreve de modo abominável: “foram admiráveis de grandeza humana os dirigentes dos sovietes, na sua repreensão compreensiva e expectante, o compositor em seu mutismo e esforço posterior de readaptação, e o povo russo conservando o músico na sua simpatia.” “Caso histórico aliás admirável – um bonito exemplo de humanidade dentre os que o Comunismo já deu ao mundo.”
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O que vale, porém, a biografia de Seroff?
Muito. Seroff fez uma pesquisa aprofundada nos arquivos de imprensa; obteve grande número de documentos e de informações graças a Nadejda Galli-Shohat, tia do compositor, que se mudara para os Estados Unidos, a tal ponto que ela aparece, na edição americana, como colaboradora de Seroff em seu livro.
A maior parte da biografia é, na verdade, um retrato da família de Shostakovich, desde seu avô, na Sibéria: percepção polifônica e complexa. Impressiona a descrição da miséria que se seguiu à revolução durante duas décadas ao menos, isso feito sem nenhuma crítica ao regime ou à sua política. Não exagerando, a família Shostakóvich estava à beira da fome, constrangida a inúmeros trabalhos diferentes; o jovem compositor, muito doentio, sendo obrigado a tocar num cinema para ajudar no sustento.
A análise de Seroff sobre a crise e o escândalo causados pela crítica oficial à Lady Macbeth do distrito de Mtsensk expõe a miséria moral que fez os amigos mais próximos abandonarem o compositor, o qual se viu isolado e solitário. Ao mesmo tempo, busca compreender a proibição num âmbito político mais vasto, além do puro capricho de Stálin.
Lembra que o assassinato de Kirov em 1934 (talvez por ordem do próprio Stalin, como querem os trotskistas, mas isso é uma outra história que não está no livro) desencadeou uma onda de repressão: “Fizeram-se milhares de prisões, e cerca de quatrocentos suicídios (sic!) foram noticiados nos dias subsequentes”.
Encarceramento de dezenas dentre os mais importantes líderes do partido comunista, clima angustiante de suspeitas, falta de confiança da população no governo. Seroff invoca ainda a ameaça fascista. Stalin convence-se que é necessário unir a União Soviética à volta de ideais positivos. É o ovo do realismo socialista chocando, é, lembro eu, o momento em que Lukács publica seu artigo “Propaganda ou Partidarismo” (Partisan Review, 1934) contra o formalismo burguês e contra as concepções trotskistas, libelo atacando o “esquerdismo” em arte, e exigindo que todo artista seja partidário. Esse contexto amplo, analisado em detalhe, oferece uma compreensão bem fundamentada dos motivos que levaram à condenação oficial.
Seroff está consciente das limitações de uma biografia escrita à distância do biografado e de seu país. “Sergei Rachmaninoff perguntou-me se acreditava em tudo que me tinham dito os homens com quem falei. Afirmei-lhe que tinha examinado cada uma das declarações; cada um dos fatos desta narrativa se baseia em documentos em meu poder ou pertencente à New York Public Library.”
Seu livro, tal como é, não poderia ser escrito na União Soviética de então. Considerando o momento, é de fato notável.
Muitas coisas se deixam perceber em entrelinhas, revelando a prudência necessária. É muito provável que o autor cuidasse para que a biografia não viesse a provocar perseguições ou contrariedades a Shostakovich e sua família. Se assinala que o “passado burguês” da família Shostakovich era uma ameaça pairando sobre eles, lembra a simpatia revolucionária do menino Dmitri, pedindo um lenço vermelho para sair às ruas; as inúmeras afirmações “oficiais” do compositor, que cita com largueza (declarações do gênero: “Não pode haver música sem uma ideologia”; “o próprio Lênin disse que ‘a música é um meio de unificar as grandes massas populares’”); transcreve trechos de cartas escritas pela mãe do compositor à sua irmã nos Estados Unidos, em que louvores ao regime flutuam como um fio de cabelo na sopa, destinados sem dúvida aos censores. Quando Seroff faz sua análise sobre a Lady Macbeth, sente necessidade de afirmar numa nota que sua colaboradora, a tia do compositor, não tinha nada a ver com isso, e que “minha narrativa aqui é baseada em documentos e relatórios publicados na União Soviética, e que puderam ser obtidos nos Estados Unidos.”
É um livro apaixonante. Suas circunstâncias não diminuem o interesse da leitura. De todas as formas, estou convencido que qualquer análise sobre Shostakovich estará limitada pelas posições prudentes que o compositor sempre manteve. Como alertou Rachmaninoff, não é possível acreditar nelas, mas também não é possível não as levar em consideração. Hoje, tende-se a interpretar as evidentes angústias que essa música impressionante transmite, como fruto da opressão do regime sobre ele, indivíduo-artista. É impossível que, de fato, isso não tenha agido sobre suas composições. Porém, até que ponto Shostakovich acreditou na ideologia soviética, até que ponto tentou sinceramente se corrigir, é impossível dar resposta.
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Comentários
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Excelente artigo!…
Excelente artigo! Shostakovich tem sido meu compositor estrangeiro preferido nos últimos meses. Sendo trotskista, sou suspeito a opinar, mas acredito que Shosta cria como nós: defender o legado de Outubro contra a asquerosa burocracia operária, que o destrói.