O “novo normal” e a internet

por João Luiz Sampaio 17/08/2020

Parece que, no mundo da música clássica, chegamos ao tal “novo normal”.

Nas últimas semanas, em um processo que só deve crescer daqui em diante, orquestras começaram a voltar aos palcos. Os repertórios e formatos são diversos. Mas a ideia em comum é mais uma vez fazer música ao vivo. Por enquanto, não há público, apenas transmissões pela internet. Assim vamos seguindo. E, quando for permitido, as pessoas passarão a acompanhar os músicos nesse retorno – parcial, de acordo com as regras colocadas pelos detalhados protocolos sanitários montados nos últimos meses.

Há uma ideia, uma sensação, de retorno. Se ela é verdadeira ou não, o tempo dirá. E não vai esperar muito para fazê-lo – a ideia de que a pandemia e a necessidade de isolamento social já são coisas do passado tem sido questionada por autoridades em medicina, ciência, infectologia e biologia, o que deveria ser suficiente, mas aparentemente não é. Para o mundo da música clássica, no entanto, a sensação de retorno tornou-se fundamental. Olhamos para a Europa e os exemplos que de lá vem, mas deixamos de olhar para os Estados Unidos, onde os números se parecem mais com os nossos – e onde as principais orquestras e teatros de ópera já deixaram claro que só se pode falar em retorno no primeiro semestre de 2021.

Para que, então, voltar agora? O desejo é compreensível. Todas as instituições, falando abertamente ou não sobre isso, estão lidando com um desafio que não é pequeno: voltar a fazer o que faziam para garantir financiamento dos patrocinadores ou do poder público. Em outras palavras: voltar para sobreviver. Em um mundo ideal, patrocinadores e governantes talvez pudessem entender a gravidade da situação, garantindo financiamento e a subsistência de atividades culturais que, por sinal, mostraram-se ainda mais importantes durante a pandemia. Mas não vivemos nesse mundo. O jogo é bruto. E o será ainda mais em 2021, quando os investimentos vão refletir os faturamentos de 2020 e as previsões nada animadoras de arrecadação.

[Divulgação / Rodrigo Rosenthal]
[Divulgação / Rodrigo Rosenthal]

Mas o afã pela volta não pode mascarar a realidade de que estar no palco hoje ou daqui a alguns meses nada tem de “normal”, ou melhor, nada se assemelha com a situação que vivíamos pré-pandemia. Não podemos nos esquecer de que boa parte, a maior parte, do repertório das orquestras sinfônicas simplesmente tornou-se proibitivo. É só fazer a conta: dependendo do tamanho do palco de uma sala, o número de músicos não poder ultrapassar quarenta, cinquenta na melhor das hipóteses. As próprias sinfonias de Beethoven, com poucas exceções, já ficam de fora. Há ajustes possíveis, claro, o barroco, os autores clássicos, a produção contemporânea – inclusive, por que não, com a encomenda de obras que se encaixem nas necessidades atuais. Mas, não custa insistir: isso significa reinventar as linhas artísticas das nossas orquestras sinfônicas, a partir de um repertório que elas não estão acostumadas a apresentar. 

Entre voltar ao palco e retomar as atividades pré-pandemia, portanto, há um vale enorme. E os olhos estarão atentos para quais instituições serão capazes de percorrê-lo com imaginação, apostando não mais naquilo que é conhecido e familiar, mas naquilo que é novo para justificar-se perante seu público. Um novo que não diz respeito apenas ao repertório, mas à sua própria posição na sociedade. Quando a pandemia começou, o maestro Simon Rattle colocou durante um debate com outros regentes uma questão a respeito do futuro: faremos menos, para menos pessoas? Cinco meses depois, será interessante perceber para quem essa fórmula parece mais do que o suficiente.  

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A internet desempenhou um papel importante durante a pandemia. Papeis, na verdade. Para a maior parte das orquestras, foi o veículo para apresentar concertos de seus acervos, como forma de manter-se atuante; para outras, tornou-se a ferramenta para a experimentação de atividades pedagógicas, mesmo que na maior parte dos casos ligadas aos concertos e óperas transmitidos. E ofereceu às instituições algo de que elas precisavam desesperadamente em tempos de paralisação: números. As cifras impressionam: milhões e milhões de pessoas atingidas por postagens de concertos e outras ações realizadas em redes sociais durante a pandemia.

São números que devem ser lidos com cuidado. O engajamento de uma pessoa que por alguns minutos acompanhou o vídeo de uma apresentação musical em uma rede social não é o mesmo de quem separou um momento de seu dia para acompanhá-la na íntegra, ainda que para a contabilidade eles representem a mesma coisa. E o engajamento de ambos não é o mesmo de quem compra um ingresso, atravessa a cidade para ir a uma sala de concertos assistir, durante cerca de duas horas, uma apresentação musical. 

Ainda assim, são milhões de pessoas. E o que se faz agora com elas?

A primeira coisa talvez seja conhecê-las. Não encontrei nenhuma pesquisa aqui no Brasil feita com o público que passou a consumir concertos e óperas na internet durante a pandemia. Mas, nos Estados Unidos, a LaPlaca Cohen realizou um levantamento com resultados interessantes. Ao todos, foram ouvidas 122 mil pessoas, não apenas com relação à música clássica, mas também a outras áreas artísticas.

Os resultados são interessantes. Segundo a pesquisa, 36% do público que consumiu concertos e óperas durante o período de isolamento social em todo o país nunca esteve presencialmente em uma sala de concertos ou teatro de ópera. É um número digno de nota, que de cara sugere um novo público em potencial. Mas o modo como essas pessoas acompanharam a música clássica na pandemia traz dados ainda mais fascinantes: o interesse por aulas e palestras foi tão grande quanto o interesse por exibições de apresentações antigas ou por transmissões de concertos ao vivo. Outro número: 81% das pessoas ouvidas afirmaram ter buscado alguma atividade criativa durante a pandemia (pintar, escrever, etc) e, desse total, 37% optaram pela música. Para finalizar, foi feita uma outra pergunta: o que uma instituição cultural pode fazer para se tornar melhor e mais relevante no futuro. As principais respostas: estar aberta a todo tipo de público (24%), tratar seus funcionários de maneira justa (20%), atrair mais jovens (19%), prestar mais atenção às comunidades em que se inserem (18%), contemplar vozes mais diversas (18%), trabalhar juntamente a outras instituições (15%).

Que conclusões esses números sugerem? Há um público potencial a ser conquistado, mas para conquistá-lo as instituições precisam se conectar com o mundo à sua volta de maneira diferente. Uma forma de fazer isso: não apenas apresentar música, mas envolver as pessoas no ato de criação musical. Outra: buscando se tornar de fato representativas da diversidade existente na sociedade – a pesquisa mostra por exemplo que, nos Estados Unidos, os negros representam 12% da população americana e apenas 3% do público de organizações culturais, e que, no que diz respeito aos latinos, o gap é ainda maior: 16% da população e apenas 5% das plateias.

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Em entrevista à edição de agosto da Revista CONCERTO, o violoncelista Olaf Maninger, membro da Filarmônica de Berlim e um dos responsáveis pelo Digital Concert Hall, programa de transmissões ao vivo de concertos do grupo, falou sobre a experiência da orquestra durante a pandemia. Segundo ele, há em média cerca de 10 mil novos registros mensais no site; no primeiro mês da pandemia, foram 700 mil.

O número por si só fala a respeito do interesse pela atividade sinfônica. Mas, claro, a filarmônica é um fenômeno global. E Maninger é o primeiro a chamar atenção para o fato de que um grupo que queira criar um projeto semelhante precisa, inicialmente, estabelecer metas realistas a respeito do seu alcance. Não haveria sentido para uma orquestra regional alemã, diz Maninger, reivindicar uma atenção e um público global – e isso não tem a ver com qualidade artística, mas com alcance mercadológico. 

Outro ponto importante por ele colocado: concertos transmitidos pela internet não são uma fonte de renda. O valor conseguido com assinaturas permite apenas que as transmissões tenham a qualidade necessária e que os músicos envolvidos recebam de forma justa por elas. E está bom assim – ainda mais quando se considera grupos cuja subsistência é garantida pelo estado, ou seja, pelo poder público, pela sociedade.

Seguindo a lógica de Maninger, talvez não seja o caso de imaginar uma orquestra brasileira – com exceção de projetos pontuais – como um fenômeno de audiência global. Mas nada nos impede de pensá-la como fenômeno nacional. Vivemos afinal em um país de 200 milhões de pessoas – um número que pode crescer se colocarmos na conta a América Latina ou mesmo outros países de língua portuguesa. 

Para tanto, porém, talvez seja preciso ir além do formato da transmissão de concertos. Ela é claro importante. Mas pode ser um dos pontos de uma fórmula que entenda a música como ferramenta de educação e de promoção da diversidade. Há demanda para isso. E a internet pode aproximar distâncias, tornando-se uma aliada importante. 

Faremos, afinal, algo com essas milhões de pessoas? 

Ou vamos esperar a próxima pandemia?
 

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