O rapaz nascido na Zona Norte do Rio e criado em Copacabana era jogador de basquete, de hóquei sobre patins e um pândego. Alto e bonitão, Paulo Gomes de Paiva Barata Ribeiro Fortes nasceu no dia 7 de fevereiro de 1923, em família onde a música era uma constante. Cresceu entoando serestas com o pai, que na vida civil era engenheiro e astrônomo, mas que tinha alma de músico. O menino estreou aos onze anos cantando em público num concurso radiofônico – e faturou o primeiro prêmio, que era um cãozinho fox-terrier. Seu nome artístico: Paulo Fortes.
O centenário do nascimento da mais popular e adorada figura do mundo lírico brasileiro acaba de transcorrer em meio a relativamente poucas manifestações se levarmos em consideração a sua importância. A Rádio MEC do Rio fez uma série de programas comemorativos, algumas ótimas lives na internet lembraram a trajetória do cantor. Mas Paulo merece muito mais.
Outro Paulo, o Szot, nosso maior nome na ópera mundial nos dias de hoje, credita a Fortes o empurrão para a carreira. “Ele foi uma influência enorme ”, conta o barítono. “Infelizmente, não o vi cantar ao vivo, mas conhecia suas gravações. Foi Paulo quem me selecionou na eliminatória do concurso Pavarotti. Fui para a semifinal, cantei para o próprio Pavarotti no Rio de Janeiro em janeiro de 1995. Talvez, tenha sido por causa dessa validação tão importante, para um jovem de 25 anos, que eu tenha realmente acreditado que eu poderia me tornar um cantor de ópera. Paulo Fortes foi e será o nosso maior de todos!”.
A carreira do jovem Fortes começou oficialmente em 1945. Aos 22 anos, já tinha passado por palcos informais e era pupilo da mezzo Gabriella Besanzoni, a diva do Parque Lage. Como acontece muitas vezes no mundo lírico, a grande chance acabou acontecendo em outubro de 1945 ao substituir o americano Leonard Warren numa montagem de La Traviata. “Conta-se que ele foi barrado na entrada dos artistas”, lembra o economista Sergio Fortes, um dos dois filhos de Paulo. “Era um menino, mas adentrou o Municipal e começou uma carreira espetacular.”
Espetacular em todos os sentidos, a carreira de Paulo só não foi internacional. “Ele morria de medo de avião; e era, também, o mais carioca de todos, não queria morar em nenhum outro lugar.” Apesar da maior parte de seus 80 papeis ter sido feita no Municipal do Rio – que ele considerava sua casa –, cantou com os maiores nomes de seu tempo. “Papai era louco pela Tebaldi, com quem se apresentou em 1954 aqui no Rio; fã ardoroso de Björling, Gigli, del Monaco. Mas a voz mais bonita do mundo, para ele, era a de Di Stefano”, revela Sérgio. Um dos poucos papeis importantes do registro que Paulo nunca fez foi – incrivelmente – Don Giovanni. “Papai evitava papeis muito pesados, puxados para o grave. Mas seu Rigoletto em São Paulo e na Colômbia ficou na história”. Dos brasileiros, Paulo admirava principalmente Assis Pacheco e Agnes Ayres.
Os cuidados com a voz não eram acompanhados por grandes esforços para manter a saúde em dia – mas, apesar do sobrepeso, “ele não tinha nem cárie”, garante o filho. “O cardiologista de papai era o Max Nunes – ele mesmo, o do rádio e da TV. Os dois marcavam consultas e passavam três horas falando do América, time pelo qual eram fanáticos, de generalidades e, finalmente, de prescrições médicas que não eram seguidas.”
A versatilidade de Paulo Fortes o levou aos palcos populares, à atuação como ator – sua estreia no cinema foi em 1971 a convite de Jece Valadão em O enterro da cafetina. Faria muitos outros filmes, inclusive de Os Trapalhões. Era ainda roteirista, pintor e desenhista (“fez todos os desenhos do livro de receitas de minha mãe”, diz Sérgio Fortes). Aprendia óperas com uma facilidade de poucos (“ele decorou uma ópera inteira em 3 dias”). Brincava: “se a Tebaldi passar mal numa Bohème, eu posso até ter alguma dificuldade, mas sem Mimi não ficaremos”.
Em junho de 1995, 50 anos depois de sua estreia, o Municipal do Rio o homenageou. Ele subiria ao palco naquele ano para encarnar o papel-título em Gianni Schicchi, de Puccini, em Il Trittico, em uma das suas últimas aparições. A seu lado, uma jovem cantora, vivendo Lauretta, que entoa um dos hits da ópera – Mio babbino caro. Era a hoje consagrada Edna d’Oliveira. “Eu estava nervosíssima, fazendo minha estreia no Rio e em um papel principal”, conta a soprano mineira. “Passei na audição, mas ouvi de um maestro do coro que minha voz era pequena. E ia contracenar com um elenco de feras...!”. Ela continua, em depoimento emocionado: “Entrou o Paulo em cena e, em seguida, vaticinou para todos ouvirem: ‘essa menina tem futuro, é muito boa’. E, à medida em que os ensaios avançavam, ganhei confiança, buscando nuances nessa obra tão conhecida. Paulo foi inesquecível, com sua voz excepcional, seu talento dramático, figura imensa e ilustre, difícil até de mensurar. Deu uma enorme visibilidade ao mundo lírico, atuando em cinema, rádio TV. O Brasil e a ópera devem muito a ele”. No dia 5 de outubro de 1995, data exata do cinquentenário, ainda houve uma festa especial no palco carioca, repetindo o segundo ato da Traviata, marco do início da carreira.
A generosidade do barítono era famosa. Ajudava legiões de amigos. Manteve o contato com a música popular pela vida toda – em especial, a seresta, gênero que registrou em dois discos, e o musical Alô, Dolly com Bibi Ferreira em 1966. Também gravou O Guarani em 1980, versão sob a batuta de Mario Tavares. De discos gravados em cena, Sérgio lembra de La Traviata, em São Paulo (1951), e de Adriana Lécouvreur, com Tebaldi, (1953), além de várias participações e faixas. Não era particularmente um homem de estúdios.
O acervo pessoal de Paulo foi entregue pela viúva, Zilca, ao Instituto Cultural Natali-Molitsas, de São Paulo. Os diretores Ana Maria Natali e Denis Molitsas estão prestes a formalizar o instituto, que tem dezenas de milhares de itens, de documentos a gravações em vários suportes. A casa fica no Belenzinho e já abriga diversos acervos importantes – entre eles, os do compositor Francisco Mignone, das pianistas Antonieta Rudge e Eudóxia de Barros, do pianista Souza Lima, dos cantores Alfredo Colósimo, Diva Pieranti e Glória Queiroz. De Paulo, o público e pesquisadores verão trajes, os caprichados álbuns de críticas, fotografias e programas, entre muitos outros itens
Um viva a Paulo Fortes, no centenário e além!
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Comentários
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Era, sem sombra de dúvida,…
Era, sem sombra de dúvida, nosso maior Barítono! Deixou um legado um legado maravilhoso! Tive a oportunidade de conhecer algumas obras recentemente. Merece ser homenageado para que outras pessoas, assim como eu, tenham a oportunidade de conhecer um dos maiores Barítonos do mundo!
Bravo 👏👏👏👏👏