Para todos nós, que o novo ano seja repleto de música e, sobretudo, de Offenbach!
As perspectivas musicais para o ano que se abre são nebulosas. Haverá mudanças na Lei Rouanet? Se houver, como será o financiamento das récitas musicais? Os teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro, principais casas de ópera do país, estão em transições repentinas e mais que incertas.
Só nos resta esperar para ver o que farão os mandachuvas que nos governam. Torcendo para que não venha o pior.
E como é ano novo, melhor pensar na música, na alegria da música. Há motivo para bom humor em 2019: celebramos o bicentenário do mais espirituoso compositor que existiu, Jacques Offenbach.
Ele, que representa o espírito francês, que compôs aquele cancã universalmente conhecido e identificado com a vivacidade parisiense, era alemão, nascido em Colônia. Chamava-se Jakob Eberst, filho de um cantor de sinagoga. Violoncelista, decidiu ir a Paris aos 23 anos para se aperfeiçoar no instrumento. Entrou no Conservatoire National e mudou o nome de Jakob para Jacques e o sobrenome para Offenbach, cidade de onde sua família era originária.
Os contemporâneos o descrevem como risonho, simpático e muito engraçado. Evitava os colegas compositores, confiando a um amigo: “Veja você, eu estou muito bem, bem demais. Minha aparência é saudável, muito saudável. Eu os evito porque não quero causar-lhes preocupação”.
Um compositor, notoriamente invejoso de seu sucesso, quando soube que ele partia para uma turnê nos Estados Unidos, recebendo uma pequena fortuna pelos concertos, disse--lhe, com falso cuidado: “Caro amigo, você não deveria se expor aos cansaços de tal viagem! Porque, enfim, você não é muito forte!”. Sorrindo, Offenbach respondeu: “Fique tranquilo! Minha saúde é tão delicada que eu não tenho sequer forças para ficar doente!”.
Sua música ri e diverte, mas exige muito de seus intérpretes. É preciso belas vozes e especial musicalidade
A palavra “opereta” era usada no início do século XIX para qualificar obras leves, divertidas, com partes faladas e outras cantadas. Essa mistura de teatro de prosa e teatro musical também caracterizava outro gênero, mais ambicioso: a opéra-comique, que de cômico só tinha o nome – basta lembrar que Carmen, de Bizet, nasceu como opéra-comique. Offenbach não queria que suas obras se confundissem com a despretensão da opereta nem com a pretensão séria da opéra-comique. Foi buscar, então, no italiano, a expressão opéra-bouffe – obras ambiciosas com temas cômicos: La serva padrona, de Pergolesi, Le nozze di Figaro e Cosi fan tutte, de Mozart, eram opere-buffe.
Offenbach adorava Mozart (que ele cita, por exemplo, em Les contes d’Hoffmann) e foi comparado a ele por Rossini, com um sorriso de simpatia, que o chamou de Mozart des Champs--Élysées. Wagner o admirava também, mas sua comparação com Mozart foi odiosa: “Offenbach seria Mozart se não fosse judeu”.
Sua música ri e diverte, mas exige muito de seus intérpretes. É preciso belas vozes e, além disso, especial musicalidade, capaz de captar o espírito vivo da escrita sem o trair com qualquer vulgaridade, porque as partituras de Offenbach são muito requintadas. Há ainda a agilidade teatral que essas obras exigem. Sempre achei que é mais fácil interpretar Tristão e Isolda que La belle Helène. Cantores mastodônticos com vozes poderosas bastam para a primeira. Para a segunda, é preciso outra coisa e mais.
Offenbach escreveu um grande número de maravilhosas composições. Duas delas, Orphée aux enfers (1858) e La belle Hélène tratam, de modo caricatural e paródico, de nobres temas clássicos. A sociedade do segundo império francês, sob o governo de Napoleão III, à qual Offenbach está intimamente associado, era ali impiedosamente satirizada. Além disso, elas assinalam a definitiva mudança dos parâmetros clássicos da cultura para um mundo moderno que não leva a sério Homero nem a mitologia: os deuses antigos desceram aos infernos para pernear o mais endiabrado e universal cancã e nunca mais conseguiram subir às honras que lhes fora conferida desde o Renascimento.
La vie parisienne, La grande-duchesse de Gerolstein, La Périchole, La fille du tambour-major são outras, entre várias mais, de suas obras-primas. A última não foi uma ópera bufa, mas uma ópera romântica e fantástica: Les contes d’Hoffmann. Morreu sem a terminar. O excelente Ernest Guiraud a completou: é a edição mais fiel ao espírito de Offenbach. Alguns musicólogos tentam versões filológicas, mas a força de obra-prima mantém-se na poderosa versão Guiraud.
Para todos nós, que 2019 seja repleto de música e, sobretudo, de Offenbach!