Entrevista com o compositor Marlos Nobre
Não é todo dia que várias orquestras brasileiras se juntam para celebrar um compositor vivo. O pernambucano Marlos Nobre completou 80 anos em fevereiro, mas o grande festejo vem agora, com a estreia de seu Concerto para violoncelo, resultado de um consórcio inédito, liderado pela Osesp, com a Filarmônica de Minas Gerais, a Filarmônica de Goiás e a Orquestra Petrobras Sinfônica, no Brasil, e ainda a Orquestra Gulbenkian, de Lisboa, no âmbito do projeto SP-LX_Nova Música do Brasil e de Portugal. O solista também é de luxo: ninguém menos que Antonio Meneses.
A ocasião coroa um dos mais prolíficos e laureados compositores brasileiros da atualidade, que recebeu na Espanha, em 2005, o 6º Prêmio Ibero-Americano Tomás Luis de Victoria, entre muitas outras honrarias. Radicado há tempos no Rio de Janeiro, Nobre reforçou os laços com sua cidade natal em 2013, ao se tornar regente titular da Orquestra Sinfônica do Recife, grupo que ele reinseriu no mapa brasileiro da música de concerto. Com energia, concilia a atividade de regência com a de composição e vem trabalhando com afinco naquele que talvez seja seu projeto mais ambicioso: a realização de uma ópera.
O senhor tem apreço por efemérides? O que significam seus 80 anos?
Quando fiz 50 anos, lembro bem que foi uma grande comemoração, algo marcante, uma cantata encomendada pela Espanha e estreada em Londres, mais de uma centena de concertos. Claro que tudo isso me projetou, além do Prêmio Tomás Luis de Victoria. Sinceramente, não sou muito ligado a efemérides. No entanto, algumas sempre têm um significado especial, marcam etapas. Esta, por exemplo, de meus 80 anos: eu, falando com franqueza, não me liguei muito na data. Com a agenda vertiginosa que tenho, não dá para ficar pensando nisso. Entretanto, essa de 80 anos e 60 anos de atividade de composição é algo evidentemente significativo para mim. Mostra que a força da própria música está inteira, imaculada, em meu cérebro. O mais importante para mim é o fato de sentir a força da criação intacta, plena e igualmente intacta minha capacidade de transmitir para o papel as mais complexas ideias imaginadas. Compus esse novo Concerto para violoncelo em cerca de três meses, entre meados de dezembro de 2018 e início de março de 2019. Ao escrevê-lo, eu, como sempre faço, coloco em prática dois passos fundamentais: o primeiro é a concepção mental total da obra e o segundo, a criação dos detalhes, ou seja, a escritura. Como criador, sempre insisto nestes dois aspectos.
Como é sua relação com Antonio Meneses, para quem escreveu seu Concerto para violoncelo? Ele participou de alguma forma da criação da obra?
Minha relação com nosso grande violoncelista Antonio Meneses vem de longa data. Foi ele quem encomendou minha Cantoria para violoncelo, baseada em uma suíte de Bach. Ele tem sido um de meus grandes intérpretes. Assim, houve a confluência da participação dele como grande violoncelista, me impelindo à criação de um grande Concerto para violoncelo. Não houve entre nós, como é de praxe, nenhuma consulta nem sugestão de como seria a obra. Somente o fato de ele ser o intérprete era o bastante para agir como impulso fundamental à criação da obra. Escrevi, portanto, pensando nele, na técnica e na musicalidade dele, confiando inteiramente na extraordinária virtuosidade do grande músico que ele é. Terminada a obra, enviei para ele, e trocamos algumas mensagens, uns poucos detalhes, e foi assim do começo ao fim. A obra foi concebida em três movimentos, que poderiam ser definidos muito brevemente como Dramático, Lírico, Virtuosístico. A encomenda foi, digamos, capitaneada por nossa querida e mais importante orquestra, a Osesp, com a qual tenho uma relação antiga e de grande confiança. É, portanto, essa obra o grande e principal item destes meus 80 anos. É uma imensa satisfação escrever para intérpretes de nível tão alto, e nisso incluo a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, a Petrobrás Sinfônica, a nova, mas já brilhante, Filarmônica de Goiás e a Orquestra Gulbenkian de Portugal.
Além desse concerto, o que mais o senhor destacaria durante as comemorações de seus 80 anos?
Venho a toda hora recebendo dos Estados Unidos e da Europa notícias de apresentações que tomam a data como referência. Normalmente, como você sabe, essas apresentações no exterior são programadas com grande antecedência, e confesso que a maior parte delas não faz nem referência a meus 80 anos. Por exemplo, destaco a primeira gravação internacional, no Japão, pela Meister Music, de minha Sonata para violão, pelo violonista japonês Toshiyuki Kumagai. Já ouvi, e está sensacional. No Brasil, sai a primeira gravação de meu Concerto para três percussões e orquestra com três solistas nacionais, liderados pelo percussionista de São Paulo Fernando Hashimoto. Mas muita coisa nem destaca meus 80 anos, é normal, coisa já programada desde três anos atrás.
Outra efeméride de 2019 são os 50 anos do filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro, no qual Glauber Rocha utilizou duas obras de sua autoria: Ukrinmakrinkrin e Rhytmetron. Como Glauber chegou à sua música? O senhor gosta da maneira como ela é utilizada no filme?
Eu não sabia, mas isso é significativo também. Conheci Glauber casualmente. Na época (por volta de 1966), eu tocava para ganhar dinheiro, com um conjunto e uma cantora, em uma casa noturna no Rio de Janeiro. Era um “show” muito curioso e inapropriado para uma casa noturna, inclusive nós tocávamos a música de um jovem compositor baiano totalmente desconhecido na época, Gilberto Gil, que começava assim: “Poetas, seresteiros, namorados, correi…”. Imagine, em uma casa noturna, poesia de Marcos Konder Reis… Ali conheci Glauber, que me chamou para fazer música para O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Trabalhei com ele direto na moviola, em um estúdio no Rio, foi incrível. Glauber não planejava muito, tinha o filme na cabeça, mas, ao ouvir minha peça Ukrinmakrinkrin, ele enlouqueceu, era aquilo que queria. E colocou na parte central, só música e imagem, naquela cena fortíssima de amor entre a protagonista, o padre e um pistoleiro. Achei incrível, ficou um momento fortíssimo do filme. Ao trabalhar na moviola, como sempre fazia, Glauber era fascinante e atuava instintivamente, reagindo às imagens e à música.
Faça, por favor, um balanço de sua atuação à frente da Orquestra Sinfônica do Recife.
A coisa mais remota, em meu planejamento de vida, era me tornar regente titular de uma orquestra sinfônica no Brasil. Eu já dirigi e gravei com orquestras de Paris, Londres, Estados Unidos, Buenos Aires… Enfim, a lista é enorme. Mas jamais como regente titular. É algo totalmente diferente. Então o jovem prefeito do Recife, Geraldo Júlio, e a secretária Leda Alves me chamaram para uma “missão”: levantar o ânimo e a moral da Orquestra Sinfônica do Recife. Era para eu ficar seis meses, em 2013, e não consegui sair desde então. A orquestra tem feito todo o grande repertório sinfônico básico, algo que nunca tinha sido realizado desta forma sistemática: todas as últimas dez sinfonias de Haydn, Mozart, as nove de Beethoven, as quatro de Schumann, Brahms, as três últimas de Dvórak, e por aí vai, além de um repertório grande de novos compositores brasileiros e, naturalmente, Villa-Lobos, Mignone, Nepomuceno etc. Enfim, um repertório que hoje transformou a sonoridade da orquestra em algo de certa importância no cenário brasileiro. Os planos são conseguir a realização de concursos internos para suprir as vagas com os jovens músicos da região (Recife, Paraíba, Natal), fundamentalmente, mas não exclusivamente. No momento, eles já são a base da nova Orquestra Sinfônica do Recife, e é um prazer ter a juventude em nossos quadros atuais.
Ao olhar para sua trajetória como compositor, o que destacaria como traço principal? Como descreveria sua linguagem hoje?
Minha trajetória nunca foi realmente “planejada”. Tudo o que ocorreu e ainda ocorre em minha vida de compositor vem como algo inesperado, que tinha de acontecer. Desde meus 5 anos, comecei a estudar piano, por acaso, pois uma de minhas primas, Nysia Nobre, era a mais qualificada professora da cidade. No entanto, eu simplesmente não gostava de exercícios, e meu maior prazer era improvisar. Sem saber, eu estava acumulando, pouco a pouco, um material musical em minha mente que seria o germe de muitas de minhas peças. Comecei a compor por acaso, simplesmente porque achava enfadonha a repetição dos eternos exercícios de Czerny. Eu, então, pegava aqueles exercícios e começava a improvisar em cima deles. Um dia Nysia me ouviu e falou para minha mãe: “Maria José, esse menino é um compositor”. E aí conheci o padre Jaime Diniz, que chegara da Itália. Com ele, estudei profundamente o contraponto – não o tradicional, mas começando com o canto gregoriano e os modos litúrgicos. Tive a sorte de ele estar na época no Recife, recém-chegado de Roma. E eu não gostava muito dos clássicos, então pulei de fato logo para Ravel, Debussy, Hindemith e, sobretudo, Stravinsky. Quando fui para os cursos de Teresópolis, em 1959, no Rio, lá estava Koellreutter ensinando composição e ensaiando o coro em que eu cantava. Koellreutter fez um teste comigo e, vendo que eu conhecia tudo aquilo de que falei, me disse: “De que planeta você veio?”. Eu simplesmente respondi: “Do Recife”. Foi muito engraçado. Minha primeira peça com ele foi para oboé solo, uma série de variações totalmente dodecafônicas. Mas logo eu fui saindo da esfera dele, eu o achava extremamente dogmático. Fui para São Paulo, estudar com Guarnieri. Era o outro lado da questão: muito dogmático em seu excessivo nacionalismo. Bem, aguentei um ano. Daí em diante, abri caminho totalmente só. E deu no que deu, não é? Tive depois dois contatos importantes, sendo o mais marcante com o grande compositor argentino Alberto Ginastera. Ganhei uma bolsa da Rockefeller Foundation e fui viver em Buenos Aires. Foi um mestre muito especial, porque com ele eu tinha de escrever a obra inteira e somente depois mostrar. As observações que fazia foram uma fonte de inspiração imensa, eram sempre diretas, curtas, marcantes. Foi meu maior incentivador, mais que apenas professor.
E quais são os planos para o futuro?
Nunca fiz nem farei planos. Desde que saí do Recife, minha vida foi traçada à mercê de acasos, de encontros, de viradas, voltas e reviravoltas, situações boas e outras nem tanto, mas tudo passou como tinha de ser, não me arrependo de nada e não olho para trás nem faço planos. Quer saber? Meu futuro é hoje, é o agora, é o momento. Quando tenho uma obra na cabeça e tenho de escrevê-la, eu me isolo totalmente e ouço interiormente as ideias. Tenho um método muito especial, pois anoto de imediato as ideias, que vão evoluindo muitas vezes de maneira quase autônoma. Quando tenho a obra em mente, ela começa a tomar forma, e eu anoto. Portanto, o futuro é o presente, o presente é o futuro, nada é planejado, nada obedece a imposições de fora nem de dentro. Não é fácil explicar, mas para mim esse processo é extremamente simples e, ao mesmo tempo, complexo. Se há alguma coisa que planejo… é escrever uma ópera, e já tenho anotada praticamente toda a estrutura. Não vou adiantar nem revelar aqui o assunto nem nada sobre o projeto, pois aprendi algo simples: se falo de um novo projeto, ele morre ali mesmo. E não queremos “matar” minha próxima obra logo agora, certo? Tenho o libreto pronto, falta tempo para terminá-la.
Obrigado pela entrevista.
AGENDA
Concerto para violoncelo, de Marlos Nobre / Antonio Meneses – violoncelo
• Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
e Giancarlo Guerrero – regente. Dias 1º, 2 e 3, Sala São Paulo
• Filarmônica de Minas Gerais e Fabio Mechetti – regente. Dias 8 e 9, Sala Minas Gerais
• Orquestra Petrobras Sinfônica e Isaac Karabtchevsky – regente. Dia 20 de setembro, Theatro Municipal do Rio de Janeiro
• Orquestra Filarmônica de Goiás e Neil Thomson – regente. Data a definir
Orquestra Sinfônica do Recife
Marlos Nobre – regente
Dia 29, Teatro de Santa Isabel (Recife)