Um dia em Heliópolis

por João Luiz Sampaio 10/09/2019

Das aulas de musicalização infantil à atividade orquestral, o Instituto Baccarelli investe no desafio de fazer da música um elemento de transformação

O Jônysson não sabe bem o motivo, mas cismou, “quando criança”, que gostava do trompete. O negócio da Camila era a viola, “desde pequenininha”. Já o Felipy se encantou pelo violoncelo logo de cara, quando viu alguém tocando na televisão – “acho que gostei do arco”. As “crianças pequenininhas” agora já são crescidas, têm 10 anos (o Felipy está com 9, mas já vai fazer aniversário) e estão à frente do violoncelo. Está com eles a professora Luciana Rosas. Na ordem do dia, um ensaio para a apresentação do final do ano, então não convém atrapalhar, até porque já está quase na hora do almoço. Ficou faltando uma só pergunta, pode? Lá vai: quem aqui quer ser músico quando crescer, quer dizer, quando crescer ainda mais? Raydson estava quietinho até então, mas foi o primeiro a responder positivamente. “Eu até já toco na orquestra, você sabia?”

Jônysson, Felipy, Raydson, Camila – e Vitor, “que hoje teve que faltar”, ela explica – são cinco dos quase 1.300 alunos matriculados no Instituto Baccarelli. O projeto foi criado em 1996, logos após um incêndio que destruiu boa parte da favela de Heliópolis, uma das maiores da América Latina. A música foi a ferramenta encontrada então pelo maestro Silvio Baccarelli para trabalhar com as crianças da comunidade após a tragédia, em uma pequena sala na Vila Mariana. De lá para cá, a iniciativa só cresceu. Hoje, o Instituto Baccarelli ocupa dois prédios próprios na Estrada das Lágrimas, dentro de Heliópolis – e o plano original inclui ainda a construção de uma sala de concertos. Tornou-se símbolo da busca de transformação por meio da arte, da música, atraindo atenção nacional e internacional: seu diretor artístico é maestro Isaac Karabtchevsky, e seu patrono, o maestro Zubin Mehta. Realiza temporadas de concertos em diversos espaços da cidade, como o Sesc, o Masp e, claro, a Sala São Paulo. Também inspirou o filme Tudo que aprendemos juntos, do diretor Sérgio Machado, adaptação da peça escrita há dez anos por Antônio Ermírio de Moraes. 

O longa chega aos cinemas de todo o Brasil neste mês, após ser exibido na Suíça e no Festival do Rio e vencer o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nele, o ator Lázaro Ramos interpreta o violinista Laerte. Após ser reprovado em uma prova para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, ele aceita um emprego como professor de música em uma escola de Heliópolis. Em um primeiro momento, a ideia o desagrada, mas, aos poucos, o trabalho com os jovens da comunidade o transforma. “O filme retrata dois mundos diferentes, e eu não queria colocar uma hierarquia entre eles. Esse é um roteiro que fala da construção de pontes, jamais de muros”, explica Sérgio Machado. “Há duas grandes mudanças na cena musical brasileira nos últimos vinte anos. De um lado, o trabalho da Osesp colocou um novo paradigma de qualidade e de respeito à atividade de uma orquestra; de outro, surgiram projetos sociais que fizeram da música uma ferramenta de transformação. O filme não é um documentário sobre o instituto, mas aborda os valores que nós defendemos. Entre eles está a certeza de que esses dois mundos são complementares. Eles enriquecem um ao outro”, complementa Edmilson Venturelli, diretor de relações institucionais, que, ao lado de seu irmão e maestro Edilson Ventureli, comanda o Instituto Baccarelli.

O dia começa cedo no instituto. Pouco depois das oito da manhã, enquanto o “Buscarelli” – ônibus que percorre a comunidade levando alunos de casas para a aula – desembarca mais uma leva de passageiros, um grupo de vinte crianças já está a postos, sentado em círculo em uma sala do segundo andar. Elas cantam, dançam. Então, começam a ensaiar. Estão preparando a apresentação do final do ano. Preocupado com a enorme lista de pedidos, Papai Noel convoca seus ajudantes. E logo a sala se transforma em uma oficina de brinquedos, na qual a música embala a confecção de bonecas e outros presentes.

A atividade faz parte dos cursos de musicalização, mas, antes que se possa falar com a professora sobre a atividade, Grazielly e Klayton, ambos de 6 anos, saem da sala e passam voando pelo corredor, em direção ao banheiro. “Péra, péra”, ela diz para o colega. Aproveitamos para conversar um pouco. “Eu fiquei muito nervoso quando você entrou na sala, sabia?”, pergunta Klayton. Nervoso ou tímido? “Não importa”, responde Grazielly. “Na apresentação vai ter mais de mil pessoas.” Tanta gente assim? “É. Ele vai ter que se acostumar, né?” A menina vai interpretar uma das bonecas na apresentação. “Eu gosto de cantar a música das bonecas, mas gosto também de história de terror. Só que não pode ficar contando porque tem um menino, o Bruno, que fica com muito medo e tem pesadelo à noite. Então não conto mais.”

De outra sala, vem o som de um grupo de contrabaixos tocando um trechinho da primeira sinfonia de Marley. “É Mahler”, corrige o professor Marcio Rampin, e os alunos caem numa risada gostosa. São três. Isaac, “mas pode chamar de Karabtchevsky que ele também responde”, Debora e André – todos com 9 anos. Tocam com desenvoltura, apesar do pouco tempo de instrumento: começaram as aulas em abril. “Não tem segredo”, explica Rampin. “Eles chegam para estudar um instrumento depois de passar pela musicalização, o que faz toda a diferença no trabalho. Há uma base a partir da qual construímos o resto.” Eles também cantam em um dos corais do instituto. “É da hora cantar”, diz André. Por quê? “Ah, a gente sente uma alegria mesmo”, ele explica. Debora ajuda: “Eu acho que quando eu toco fico feliz de ouvir a música que tá saindo de mim”.

No mesmo corredor, há aulas de viola, violino, violoncelo e trompa. Dá para espiar pela janela da porta. Mas já são quase onze da manhã e, no outro prédio, está começando a segunda parte do ensaio da Sinfônica de Heliópolis, o grupo de ponta do instituto. Dias antes, eles haviam tocado na Sala São Paulo um programa em homenagem ao pianista Gilberto Tinetti, com obras de Radamés Gnattali e Bach. Agora, desbravam um mundo novo, fazendo as primeiras leituras de uma peça inédita da compositora Clarice Assad, A jornada de Agrégora. “Exagerem o efeito de crescendo e decrescendo”, pede o maestro Edilson Ventureli às cordas. A reação dos músicos é rápida. “Metais, percussão, contrabaixos, vocês precisam ouvir uns aos outros.” A peça vai sendo desconstruída, naipe por naipe, antes de voltar a ser ouvida como um todo. “É um desafio diferente”, explica o maestro ao grupo, quando a partitura pede algo a que músicos de orquestra não estão acostumados: a necessidade de improvisar. 

O ensaio acaba, e surge a chance de conversar com o spalla Robinho Carmo, de 20 anos. Desde moleque, ele já tinha “um violininho”, presente do avô. Mas começou a estudar seriamente aos 9 anos para tocar na igreja. Logo foi para o instituto. Entrou na orquestra juvenil, ficou alguns meses e resolveu fazer a prova para a Sinfônica Heliópolis. Passou para primeiro violino. Qual foi o momento mais marcante de sua trajetória? A resposta vem sem hesitação. Foi há dois anos. Havia feito a prova para spalla, mas nenhum músico fora escolhido. Pouco tempo depois, no entanto, a orquestra se apresentaria na Sala São Paulo. No repertório, a terceira sinfonia de Mahler, sob regência de Karabtchevsky. “Eu era o concertino, mas, como não havia sido escolhido um spalla, eu fiquei nessa posição. Dez minutos antes de entrar no palco, o maestro Edilson chegou para mim e disse que Karabtchevsky havia decidido que eu merecia a vaga de spalla. Então, subi no palco já com essa responsabilidade. Aguentei até onde deu, mas, no último movimento, não teve jeito, acabei me emocionando.” 

Pausa para o almoço. Às duas da tarde, a rotina recomeça. Primeiro, nas duas grandes salas do segundo andar. Em uma delas, ensaia o Coral Intermediário B, formado por trinta cantores que têm entre 10 e 15 anos; na outra, o Coral Infantil D, com dezenas de crianças com idade entre 6 e 8 anos. O repertório é diferente: no primeiro caso, Panis angelicus; no segundo, trechos da trilha do filme A pequena sereia. Mas há preocupações em comum. As maestrinas Silmara e Lizandra estão atentas às vozes, à música, mas também aos movimentos, à expressão corporal. Pedem que os alunos ouçam uns aos outros, estimulam a percepção. “O ato de cantar é essencial para a formação de qualquer músico”, explica Silmara. “Cantar é uma ferramenta de aprendizado, de repensar a postura, a atitude, de olhar para si mesmo e para o outro, de entender seu lugar no conjunto”, completa.

Olhar – ou ouvir – a si mesmo e ao outro está também na base da aula de violino do professor José Márcio, não longe dali. São quatro os alunos: Enzo, Gabriel, Ranny e Emili, todos com 9 anos. Eles também estão se preparando para a apresentação de fim de ano. A decisão é individual, mas pensada em conjunto. Um toca, os outros escutam. São convidados a opinar sobre a apresentação dos colegas – e os comentários, surpreendentes, vão desde a posição do arco até o peso dado a cada nota. “As apresentações normalmente são coletivas, mas desta vez serão individuais”, explica o professor. “O começo é justamente a descoberta da peça com a qual eles se sentem mais seguros. É importante que o palco seja uma experiência agradável para eles.” “Essa eu toco para a minha irmã dormir”, diz Emili, antes que juntos eles comecem a ensaiar Canção do vento.

O dia termina de volta à sala Zubin Mehta. No final do ensaio da Sinfônica Juvenil, restaram apenas as cordas. Com o restante da orquestra dispensado, o maestro Edilson Ventureli puxa uma cadeira e conversa com os músicos. Eles têm um desafio importante pela frente: vão se juntar aos colegas da Sinfônica Heliópolis no concerto de encerramento da temporada, sob comando de Karabtchevsky. O programa inclui a Abertura 1812, de Tchaikovsky. A exigência para as cordas, explica Ventureli, é enorme. E a preparação tem que ser cuidadosa. “Vocês estarão no palco da Sala São Paulo, junto com seus colegas da sinfônica”, explica o maestro. “Isso exige responsabilidade, é para isso que trabalhamos. Vocês não têm que provar nada para mim. Estar ali será uma conquista de vocês.” Antes de irem embora, uma última passada, os compassos iniciais. A música soa mais uma vez, enérgica, com foco. “Até amanhã.” 

 “Eu sei que a cobrança é grande, nós pegamos no pé mesmo. Mas o respeito por eles também é enorme. Cada músico do instituto sabe que tudo isso existe por causa dele, para ele”, diz o maestro Ventureli, logo depois do ensaio. O projeto conta, hoje, com quatro orquestras – a infantil, a infantojuvenil, a juvenil e a Sinfônica Heliópolis –, além de uma camerata dedicada ao repertório clássico, recém-criada por iniciativa dos próprios alunos, orientados pelo professor Pedro Visockas. Músicos mais velhos ajudam os mais novos em ensaios de naipes, por exemplo, estabelecendo um diálogo. Robinho é um desses casos, tendo passado por alguns dos grupos. “Em todos eles, você se sente confortável para se dedicar cada vez mais, há uma estrutura física, mas não só, que te leva adiante, que te faz enxergar uma possibilidade de futuro”, explica.

“Se um aluno nosso quer seguir carreira na música”, explica o maestro Edilson Ventureli, “nós tentamos dar a ele as melhores condições possíveis, um ensino de qualidade, que o prepara de forma competitiva para o mercado”. Os números estão a seu lado. Um levantamento rápido mostra oito ex-alunos do instituto na Filarmônica de Minas Gerais; outros oito na Filarmônica de Goiás; sete na Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo; quatro na Orquestra Sinfônica Brasileira; e assim por diante, muitos deles em posição de liderança de naipes. “Além disso, a cada nova turma da Academia da Osesp, há um número expressivo de meninos nossos. Este é um primeiro paradigma que nós ajudamos a relativizar com nosso trabalho: a ideia de que a música clássica pode ser ouvida e tocada apenas por um pequeno grupo, por uma elite; não, ela pertence a todos”, diz Edilson.

Mas há outro paradigma tão ou mais importante a ser quebrado no dia a dia do projeto. “A carreira na música é uma escolha individual, não necessariamente nosso foco. O objetivo do instituto, antes de mais nada, é transformar vidas, introduzir valores que possam ajudar esses jovens em suas trajetórias pessoais, ampliar o acesso deles à cultura, mostrar que eles têm possibilidades. As orquestras são o lado mais visível do projeto, claro, elas são o produto que temos para mostrar à sociedade. Mas não são um fim em si mesmo, são o ponto de chegada, a consequência de um trabalho que começa na infância, nas aulas de musicalização, e passa pelos corais, pelas aulas de instrumento. A parte técnica é algo que se aprimora com o tempo, mas desde o primeiro dia essas crianças já fazem música, já trabalham a intenção musical. Isso vai ajudar aquele menino ou aquela menina que resolver seguir na música, claro, mas dá a largada também em um processo de transformação que serve para qualquer um”, afirma o maestro.

“Para cada aluno que fica na música, há uma dezena que segue outro caminho”, diz Edmilson Venturelli, o diretor de relações institucionais. “Mas, no campo em que eles escolherem, temos certeza de que serão profissionais melhores, porque aprenderam coisas sérias aqui, possibilitadas pela prática musical: o valor do trabalho em grupo, a importância de ouvir o outro, da disciplina, a necessidade de estimular a criatividade, a autoestima. Isso é resultado da maneira como trabalhamos. Aprendemos muito. Quando começamos, lá atrás, o foco era no instrumento apenas. Com o tempo, no entanto, percebemos a importância de ir além, de criar uma estrutura mais ampla. Ficou claro para nós a ferramenta que a música poderia ser, ou ainda, qual seria a forma ideal de extrair dela os melhores resultados possíveis.”

O tempo também trouxe uma nova relação do instituto com a comunidade. “Esse diálogo se transformou muito. No começo, a música clássica era algo tão distante do morador de Heliópolis que o pai e a mãe desconfiavam, não conseguiam aceitar aquilo como realidade possível também para eles. Hoje, depois de tudo o que já foi feito, dos caminhos abertos pelos primeiros que se formaram, a situação é diferente. Era muito comum também o aluno completar 14, 15 anos e deixar as aulas, pois os pais diziam: ‘Chega, já se divertiu, agora vamos trabalhar, viver de verdade’. Isso tem acontecido cada vez menos, porque a música também é vista como uma possibilidade de futuro”, diz Edmilson. “E há outro dado importante. Nos últimos anos, Heliópolis passou, graças a Deus, por mudanças socioeconômicas grandes. Se o instituto, em algum momento, foi a única opção para eles, hoje há uma oferta maior de serviços e possibilidades dentro da comunidade. Uma das consequências dessa transformação foi que o instituto precisou estar ainda mais próximo das famílias, ouvi-las, entender suas necessidades, criando, por exemplo, uma comissão de pais. Essa nova realidade amadureceu muito nossa relação com a comunidade e nos fez refletir e pensar sobre a natureza de nosso trabalho, a importância que ele pode ter.”

Às vésperas de completar 20 anos, o Instituto Baccarelli enfrenta alguns desafios – entre eles, claro, a equação de sobreviver sem estar ligado a um órgão estatal, ou seja, sobreviver apenas de patrocínios. Mas não só. “Os últimos anos foram importantes. Quando nos mudamos, em 2009, para a nova sede, aprendemos bastante. Nós, enfim, tínhamos um espaço nosso, adequado. Mas, ao mesmo tempo que chegamos a outro patamar, cresceu também a responsabilidade, a estrutura de trabalho necessária para manter esses prédios e tudo o que acontecia dentro deles, a necessidade de estabelecer uma organização interna de trabalho. De certa forma, hoje estamos vivendo a maturidade do processo iniciado ali. O que significa que estamos prontos para buscar um novo patamar. Temos a certeza de que há, sempre, mais e melhores maneiras de desenvolver nosso trabalho. E parte do nosso desafio é descobrir quais são elas”, completa Edmilson.
 

Alunos do Instituto Baccarelli