Flautista, que completa 92 anos em fevereiro, soube compreender e influenciar como poucos a música brasileira
Existe, na história da música ocidental, um fato curioso relacionado a escolas instrumentais ligadas a tradições de determinados países. E isso, sobretudo, a partir do século XIX, quando os mecanismos dos instrumentos se desenvolveram sobremaneira. Paganini, por exemplo, foi o mais criativo e importante músico de seu instrumento na história. No entanto, foi a partir de Budapeste, com Leopold Auer, Sevcik e Joseph Joachim, e em seguida em toda a Europa oriental que surgiu a escola moderna do violino, que se espalhou mundo afora. E foi também da Europa oriental que surgiram as mais expressivas e brilhantes figuras do piano moderno, como Chopin e Liszt.
Nos Estados Unidos, formou-se uma rica e virtuosística tradição de música para instrumentos de metal, impulsionada, como sabemos, pela amplitude do jazz. Eu poderia citar outros exemplos dessa natureza, mas posso lembrar também que muitas vezes ocorreu o contrário. Na França, por exemplo, nasceu uma escola de instrumentos de palheta dupla, como o oboé e o fagote, que, por sua sonoridade excessivamente anasalada e estridente, apesar de espalhada pelo mundo (no caso do oboé, por Tabuteau), foi com o tempo “amaldiçoada” e substituída pela da escola alemã de instrumentos de madeira, de timbre “aveludado” (lembre-se da verdadeira escola implantada por Lothar Koch no oboé e da construtora de fagotes Heckel).
Mas foi na mesma França que surgiu uma especial e privilegiada escola de flauta. Ela ganhou o mundo com sua sonoridade “aberta”, brilhante, ágil, de vibrato expressivo que a todos encantou por meio de teóricos como Paul Taffanel, mestres como Marcel Moyse e flautistas modernos como Jean Pierra Rampal, os franco-suíços Aurèle Nicolet e Emmanuel Pahud.
Por sua vez, o Brasil é também o país da flauta. E como! Gênios improvisadores desse instrumento – Altamiro Carrilho, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Copinha, João Dias Carrasqueira, Patápio Silva, Calado e muitos outros – criaram não só uma infinidade de peças para o instrumento, como uma verdadeira tradição técnica para execução de grande inventividade, o choro.
Para felicidade de nossa música instrumental moderna, porém, em meados do século passado, criou-se um elo entre essa especial escola francesa de flauta e nossa rica tradição. Achegou-se a nosso país a flautista francesa Odette Ernest Dias. Formada no famoso Conservatório de Paris, onde obteve o prêmio especial em flauta e, em seguida, o primeiro lugar no Concurso Internacional do Conservatório de Genebra, foi trazida ao Brasil pelo maestro Eleazar de Carvalho, em 1952, para integrar na Orquestra Sinfônica Brasileira, na qual permaneceu até 1959. A partir de então, atuou como flautista da sinfônica da Rádio MEC no momento mais importante da história dessa orquestra.
Além do trabalho em sinfônicas, ela deu aulas, integrou orquestras de rádio, atuou em gravações históricas e realizou importantes pesquisas
Poucos músicos de grande envergadura que vieram para cá se misturaram com nossa realidade musical em todas as áreas como Odette. Além do trabalho em sinfônicas, deu aulas no Conservatório Brasileiro de Música e nos Seminários de Música Pró-Arte do Rio de Janeiro. Além disso, como professora visitante, esteve em diversas instituições de ensino brasileiras e dos Estados Unidos. Foi integrante de nossas antigas e excelentes orquestras de rádio e televisão. Atuou em estúdios de gravação – por exemplo, no famoso disco de Eliseth Cardoso com composições de Jobim, o antológico Canção do amor demais. Atuou, ainda, como pesquisadora e autora de vários trabalhos teóricos publicados em artigos e livros. Como solista especializada em música brasileira, pela qual se interessou e para a qual contribuiu sobremaneira, desenvolveu estudos e técnicas de execução, realizou centenas de apresentações públicas e gravou mais de vinte discos como solista.
A partir de 1974, Odette transferiu-se para Brasília, onde foi professora titular na universidade – não só de flauta, mas de diversas matérias culturais. Como é sabido, desde 1977existe em Brasília o famoso Clube do Choro, talvez inspirado pela presença na cidade do monumental Waldir Azevedo. Pois essa instituição que tanto trabalha pela preservação e pelo desenvolvimento dessa música nasceu de reuniões na casa de Odette. Aliás, por seus serviços prestados à cultura musical da cidade, ela recebeu do governo do Distrito Federal a Comenda de Mérito Cultural.
É também mãe de excelentes músicos: Carlos, Jaime, Elizabeth, Cláudia e Andréa, que, enfeitiçados pela natureza de sua inquietação cultural, tornaram-se instrumentistas de primeira e ativos animadores culturais da capital e do país.
Figura agradável e de doçura sem igual, Odette Ernest Dias é amada por todos que têm o privilégio de com ela conviver. Neste mês de fevereiro, ela completará 92 anos de excitante existência. Pelas informações seguras que obtive, não pensa em encerrar a carreira, já que possui importantes e ambiciosos projetos para os próximos anos…