Entrevista com Afa Dworkin, violinista e diretora artística da Sphinx Organization
Há 25 anos, a Organização Sphinx tem ajudado a transformar a cena musical estadunidense. Baseado em Detroit, no estado de Michigan, o projeto luta por diversidade e representatividade, por mais espaço para artistas negros e latinos. O que começou como um concurso criado pelo violinista Aaron Dworkin é hoje uma estrutura com X alunos, programas dedicados à formação de artistas e gestores e diversos grupos musicais. Um deles, o Sphinx Virtuosi, vem ao Brasil neste mês para concerto na Sala São Paulo, pela temporada da Tucca. O conjunto vai tocar peças de Jessie Montgomery, Michael Dudley, Valerie Colman, Villa-Lobos e Ricardo Herz, violinista brasileiro que também atua na apresentação. Sobre a trajetória do projeto, a importância da diversidade e o modo como o meio musical deve refletir a sociedade, a fundadora e diretora artística Afa Dworkin conversou com a Revista CONCERTO.
Eu gostaria de começar a conversa voltando um pouco no tempo. A senhora poderia contextualizar a criação da Organização Sphinx, nos anos 1990?
A Sphinx surgiu como resposta à falta de representação e participação de artistas negros e latinos no cenário da música clássica. Àquela altura, negros representavam 1,5% dos músicos de orquestra nos Estados Unidos, onde são 14% da população. No caso dos latinos, algo semelhante acontecia, e hoje eles são quase 19% da população. Havia uma desconexão, uma falta de harmonia flagrante, entre o meio musical e a sociedade como um todo. Aaron Dworkin se propôs a pensar formas de mudar as estatísticas. E essa preocupação tinha a ver com sua própria experiência de ser, na maior parte das vezes, o único músico negro na sala. Quando a Sphinx nasceu, era um programa. Hoje, é mais que isso, é um movimento, é um agente a trabalhar pela mudança de percepções a respeito do universo da música clássica.
Mais de 25 anos depois, a senhora acredita que essa realidade tenha mudado?
Hoje não há dúvida a respeito de quão importante a diversidade é para instituições musicais. Há uma compreensão mais ampla a respeito da necessidade dessa conversa, desse debate, ou seja, não precisamos mais explicar por que isso é relevante. Mas não quer dizer que o cotidiano das instituições tenha de fato se transformado. Quando a Sphinx surgiu, tinha como parceiras nos Estados Unidos uma escola de música e uma orquestra. Hoje, são 250 escolas e 112 orquestras. Obviamente, significa algo. Mas ainda há muito a fazer no sentido de priorizarmos de fato a diversidade nas instituições.
A Sphinx trabalha com a formação de músicos e com a criação de oportunidades para jovens artistas, tendo em vista a diversidade. Em que sentido esse trabalho poderia sugerir outro tipo de fazer musical, lidando com questões como a possibilidade de repensar o ritual do concerto ou mesmo o repertório?
Poderia e deveria sugerir – e acredito que estamos fazendo isso. Uma das questões de fundo de nosso trabalho é justamente pensar como a música clássica deve ser produzida e consumida. Hoje, a ideia de música clássica, no que diz respeito a repertório, por exemplo, é muito mais ampla do que já foi. E nos parece claro que a inovação, considerando também as formas de apresentação e diálogo com o público, vem da diversidade. E que sem inovação não há excelência.
O programa que os Sphinx Virtuosi vão apresentar em São Paulo traz obras de autores negros, algumas delas encomendadas pela organização.
É uma preocupação ligada à criação de um novo repertório. O que buscamos é fazer deste repertório um universo maior e mais rico. Todos os anos encomendamos obras, e acredito que esse também é um campo em que houve crescimento. Sete anos atrás, compositores negros representavam menos de 0,7% da programação das orquestras americanas. Depois do caso George Floyd [homem negro morto estrangulado por um policial branco em Minneapolis, em maio de 2020] e das reflexões feitas durante a pandemia, o número cresceu para 18%. Há de se pensar em um novo cânone para a música clássica, um cânone ampliado, que reflita a sociedade.
No Brasil, há uma série de projetos que entendem a formação musical de maneira que extrapola a questão técnica. Essa, claro, é permanente. Mas as iniciativas tentam também entender o fazer musical como uma forma de diálogo, de construção da sociedade. Isso coloca diversas ideias para essa nova geração. Como, no entanto, impedir que esses jovens sejam mais tarde engolidos pelas instituições, que nem sempre estão abertas a essas reflexões?
Essa é uma questão fundamental. E a resposta tem a ver com nosso papel como educadores. Como professores, precisamos insistir na excelência e, ao mesmo tempo, abrir espaço para que o jovem artista desenvolva seu potencial, suas ideias, suas percepções a respeito do que faz. Nós ainda não entendemos completamente que precisamos ensinar de forma a refletir o nosso mundo, não um mundo de séculos atrás. Isso tem a ver tanto com a abertura para o novo cânone de que falávamos há pouco, como com mostrar ao jovem que há diversas possibilidades no que diz respeito ao trabalho de um músico, não só integrar uma orquestra. Eles precisam ser encorajados a refletir sobre para onde gostariam de ir. Muitos, inclusive, não têm interesse em estar no palco, gostariam de dar aulas, trabalhar com produção, com agenciamento de artistas. Precisamos fazer muito mais disso. A nova geração é extremamente bem informada, criativa, relaciona-se com a tecnologia de formas originais. E pode levar essas capacidades tanto para o mundo musical mais tradicional quanto para a criação de novos caminhos de organização. Para isso, no entanto, é preciso estar aberto a repensar certezas arraigadas durante muito tempo. Não há mais sentido em ensinar história da música em um mundo global, ignorando o fato de que ensinar significa incluir questões como raça, etnia, estruturas políticas, econômicas, sociais, que influenciam tudo o que fazemos.
Além da formação de músicos, a Sphinx desenvolve trabalhos com gestores. A senhora poderia falar um pouco mais sobre o Sphinx Lead?
É um de nossos projetos mais recentes, foi criado há cinco anos. Trata-se de um programa de liderança de dois anos para negros e latinos. O objetivo é ajudar na capacitação da próxima geração de líderes e executivos de projetos musicais. Aqui tiramos o foco do estudo musical e passamos a abordar a ideia de que a gestão e a administração de orquestras, teatros e outros projetos precisam refletir as comunidades. Identificamos talentos, eles passam por um currículo que desenvolve suas capacidades e, mais importante, entendem que não estão sozinhos e que uma rede pode se formar a partir do trabalho que vão fazer. Os resultados têm sido animadores: apesar do pouco tempo, mais de 60% dos alunos já estão inseridos no mercado, contribuindo com o cenário musical a partir de sua visão de mundo.
Estamos falando, então, de uma preocupação em estabelecer novas percepções do fazer musical em todo o sistema – quer dizer, na orquestra, na gestão, mas também na formação musical e em diversos campos de atuação dentro da música.
É assim que uma mudança real pode acontecer. Aqueles que vão liderar, seja na gestão, seja do ponto de vista do músico, podem oferecer novos exemplos e podem demandar das instituições musicais que mudem a organização e a mentalidade que hoje guiam o trabalho e a construção do meio artístico.
Quando se fala da necessidade de um meio musical mais diversificado, de orquestras que não representam a sociedade em que estão inseridas, a questão da excelência é colocada, muitas vezes, de maneira perversa. Em outras palavras, o argumento é: se o músico for bom, terá oportunidades. Isso não leva em consideração um cenário mais complexo, de inequidade, de falta de oportunidades. A Sphinx criou a National Alliance for Audition Support (Aliança Nacional para Suporte em Audições). O objetivo é tratar dessa questão?
Dessa e de algumas outras. É um projeto sem precedentes e que nasceu da certeza de que esse é um problema real e precisa ser enfrentado de diversos ângulos. Tanto que temos vários parceiros, como a Liga das Orquestras Americanas, que reúne mais de setecentas orquestras. A aliança oferece a músicos latinos e negros uma combinação de mentoria, preparação para audições, apoio financeiro para viagens até as cidades em que elas acontecem e testes. Mas nosso trabalho é também com as orquestras, defendendo a necessidade de que se abram a novas formas de selecionar artistas. Não se fala em um só momento de abrir mão da excelência, e sim de mostrar que ela existe entre esses artistas. Que uma forma de excelência diz respeito também à diversidade e às contribuições que ela pode gerar. Trata-se de quebrar barreiras que existem há mais de cem anos e não podem se perpetuar no mundo atual.
Obrigado pela entrevista.
AGENDA
Sphinx Virtuosi
Ricardo Herz – violino e Thomas Mesa – violoncelo
Dia 24 de outubro, Sala São Paulo