Conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, inspirou ópera de Rufo Herrera que será encenada neste mês em Belo Horizonte
Em 1985, por encomenda da Fundação Clóvis Salgado-Palácio das Artes, o compositor Rufo Herrera – músico argentino radicado no Brasil desde a década de 1960 – compôs a ópera Matraga. Agora, quase quarenta anos depois e comemorando os noventa anos do compositor, a ópera ganha uma nova e ambiciosa produção, que contará com a Orquestra Sinfônica e o Coral Lírico de Minas Gerais, a Cia. de Dança Palácio das Artes e um elenco de destacados cantores e atores, sob direção cênica de Rita Clemente e direção musical e regência de Ligia Amadio.
O conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, a partir do qual Rufo Herrera criou o libreto, foi originalmente publicado em 1946, no livro Sagarana, primeira obra-prima de Guimarães Rosa. É a história de um homem valentão e destemido, “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”. Por vingança, Nhô Augusto sofre uma emboscada que quase lhe custa a vida. É salvo por Mãe Quitéria, uma negra velha que consegue recuperá-lo por meio da fé cristã. Matraga, então, se encontra com Deus impondo-se uma vida de penitências (“Jesus manso e humilde, fazei meu coração igual ao vosso…”). Por fim, ao enfrentar o jagunço Joãozinho Bem Bem, morre para salvar a vida de um desconhecido. “A hora e a vez de Augusto Matraga” é sobre violência, misticismo e a luta entre o bem e o mal. Como escreve Rufo Herrera, “o homem vivencia cotidianamente a sua realidade interior, assumindo a mobilidade da alma humana, sem camuflagem e sem paliativos da fala moral. Ele oscila permanentemente entre o bem e o mal. Ora se apruma, ora cai ao nível da fera, ora paira acima de Deus, ora do diabo”.
A diretora cênica Rita Clemente entende o sertão de Guimaraes Rosa como “sendo sobre todos nós, nossas idiossincrasias, nossas mazelas e o que tem de mais profundo na natureza humana: o bem e o mal ali, juntinhos. A palavra natureza é a chave! Tudo é natureza na história: grandes abismos, um sol bonito, um horizonte finito e profundo, o riacho que passa e a chuva que tarda em chegar”.
Rita também chama atenção para o caráter humano e contraditório de perceber que a natureza é, ao mesmo tempo, bem e mal. “Isso me parece o mais arquetípico. Além das iconografias deste mundo sertanejo e sua carga de religiosidade e misticismo, muito próximos de nós, mineiros, há algo realmente universal no modo como a história trata o conflito; pois, ao compor um herói torto, não o reduz. No princípio maniqueísta, o conflito se amplia quando, ‘em nome do bem’, o anti-herói é mau. Matraga expõe essas lutas internas e encena o sertão: é beleza, é criação e é morte.”
A ópera, escrita em três atos, mescla música com teatro falado – alguns dos personagens, como o próprio Matraga, são atores. E Rita Clemente afirma que a música de Rufo Herrera abre espaços para encenação. “A música é sofisticadamente criada para dar voz à cena. Por isso opto pelo diálogo entre os vocabulários de cena e não pela ‘dramatização’ – essa ideia equivocada sobre teatro. O que rege a interpretação em Matraga é a circunstância, o que rege a encenação é a circunstância, e o que me guia é criar diálogo em tudo, com tudo.”
A maestra Ligia Amadio lembra a singular biografia de Rufo Herrera, que, após realizar pesquisas com a música dos povos remanescentes das civilizações originárias, estabeleceu-se inicialmente em São Paulo para estudar com Olivier Toni, depois em Salvador, onde seguiu pesquisas sob a orientação de Ernst Widmer, e, a partir de 1977, finalmente em Belo Horizonte, atuando na Fundação de Educação Artística, instituição à qual permanece ligado até hoje. “A trajetória do autor fala por si: um artista que absorveu as principais correntes estéticas da música contemporânea latino-americana e, especialmente, da música brasileira e que foi buscar em uma das mais importantes obras literárias de nosso país e, mais especificamente, do estado de Minas Gerais, fonte de inspiração para uma peça que reúne música, balé, teatro e recitação.”
Sobre a música, Amadio afirma: “Poderia dizer em termos simplistas que a música de Matraga pontua e veste dramaticamente o roteiro da ação, representando as forças da natureza, a aridez das paisagens, a violência das lutas, a inocência das canções populares, a atmosfera do sagrado e do mágico”.
A partitura original de Matraga foi revisada e refeita pelo maestro Marcelo Ramos. “Junto com nosso maestro assistente André Brant, estamos trabalhando sobre este novo material”, conta Liga Amadio. E conclui: “Recuperar esta música complexa, que celebra e trata de traduzir Guimarães Rosa em toda a sua riqueza, não é tarefa fácil. Mas nos sentimos recompensados por participar da recriação de uma obra fundamental da cultura mineira”.
AGENDA
Ópera Matraga, de Rufo Herrera
Ligia Amadio – direção musical
Rita Clemente – direção cênica
Dia21, Cordisburgo (MG)
Dias 25, 27, 28 e 29, Palácio das Artes (Belo Horizonte)