Viva o ecumenismo musical de Almeida Prado

por João Marcos Coelho 01/11/2023

Compositor pregava a convivência benéfica de estilos, com rigor criativo e sem descambar para a banalidade em que muitos mergulham

Acredito que estamos diante de uma daquelas empreitadas virtuosas e plenas de afeto proporcionadas por um grupo de notáveis músicos brasileiros capazes de performances que, sem dúvida, constituirão paradigma na interpretação da obra camerística de José Antonio Almeida Prado para violino e piano. Ao todo, onze intérpretes agrupados em duos: Constança Almeida Prado Moreno/Paulo Gazzaneo, Cláudio Cruz/Olga Kopylova, Emmanuele Baldini/Lucas Thomazinho, Ricardo Amado/Flávio Augusto e Gabriela Queiroz/Aleyson Scopel. O maestro Carlos Eduardo Moreno, parceiro de vida de Constança Almeida Prado, é o diretor musical desse elenco estelar que montou o disco Cantiga de amizade.

O álbum triplo traz a integral da obra de Almeida Prado nesse formato e viabilizou-se graças a um incentivo cultural do qual pouco se fala, mas que é um dos meios mais transparentes e democráticos de o Estado apoiar as artes. No domínio da música de invenção, o Proac da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo tem proporcionado aventuras essenciais da música contemporânea brasileira. Um parêntese: esse álbum não é exceção. Simultaneamente, foi lançado no mês passado em edição digital outro projeto viabilizado pelo mesmo mecanismo: Aylton Escobar, em tributo aos seus 80 anos, pelo Núcleo Hespérides – música das Américas. Vivo fosse, Almeida Prado, santista como Gilberto Mendes, teria completado 80 anos em 3 de fevereiro. 

Modo de escuta

Experimente escutar duas vezes, encadeados, o primeiro movimento da Sonata para violino e piano nº 1, intitulado Granítico, em que o violino tece melodias angulosas sobre um chão pianístico arisco, denso, dissonante; então, pule para a Sonata nº 2, um movimento só, vulcânico, beethoveniano na ambição, mas muito pessoal na escrita; e mergulhe na primeira e ótima gravação mundial da versão de 1998 para violino e piano da primeira das Cartas celestes, parte de um conjunto de obras para piano com esse título, um dos maiores monumentos pianísticos da música contemporânea, equivalente, em ambição e realização, a ciclos essenciais de nosso tempo, como o Catálogo dos pássaros, de Olivier Messiaen – não por acaso seu mestre em Paris, tanto quanto Nadia Boulanger, com quem Almeida Prado correspondeu-se por longo tempo. Se o francês encantou-se com os pássaros, o brasileiro “viajou” a bordo das várias conformações celestes, sempre vistas de nosso chão. Sugestão final: encante-se, emocione-se com as 19 Cenas infantis que dedicou à filha Constanza. São muito mais que mimo para a criança.  

À medida que escutava essa música tão multifacetada, voltei ao primeiro semestre de 2010. Almeida Prado foi professor de composição por um quarto de século na Unicamp; Campinas era sua segunda cidade “natal”. Convidei-o para fazer a curadoria de um módulo da série de concertos semanais de música contemporânea realizada no auditório da CPFL em Barão Geraldo. Lembrei-me demais das deliciosas conversas musicais no trajeto São Paulo-Campinas-São Paulo. E também porque ele propôs um módulo que tem tudo a ver com o álbum de 2023. Intitulou-o Caleidoscópio

No enxuto e certeiro texto de apresentação do programa impresso, reproduziu a definição dicionarizada da palavra que tem dois sentidos: 1) aparelho óptico formado por um tubo de cartão ou de metal, com fragmentos de vidro colorido que se refletem em pequenos espelhos inclinados, apresentando, a cada movimento, combinações variadas e agradáveis; 2) conjunto de ideias, ações, eventos. “E é exatamente o que eu, Almeida Prado, e minha filha Constança idealizamos: uma sucessão de contrastes de estilos que, a exemplo dos vidrinhos coloridos do caleidoscópio, formam as mais variadas figuras.” Concluiu dizendo que as obras escolhidas, dele e de terceiros, “demonstram a benéfica convivência de estilos tão diferentes, num verdadeiro ecumenismo musical”.

Este era seu DNA: a convivência benéfica de estilos bem diferentes entre si, um ecumenismo que mantém o rigor criativo, sem descambar para a banalidade em que muitos mergulham, conscientemente ou não. Por isso mesmo, cada um desses álbuns ora lançados tem personalidade própria. O primeiro, tecnicamente parrudo, autobiografia pianística (o piano era seu instrumento preferencial, ele o dominava como poucos), traz as quatro sonatas para violino e piano compostas entre 1980 e 2007. Os dois seguintes são tecidos com intenso afeto. Está lá a faixa-título, Cantiga de amizade, dedicada a Max Feffer em 1978, violinista amador e então secretário de Cultura criador do Festival Internacional de Jazz inteiramente transmitido ao vivo pela TV Cultura. E também, entre outras, uma delicada Sonatina, de 1984, dedicada a Serguei de Carvalho, filho do maestro Eleazar.

Fato é que você termina a audição e vem à mente a dúvida se está diante do mesmo compositor, tamanha a heterogeneidade. Sim, é o mesmo. José Antonio Almeida Prado, com quem convivi mais de perto em maio de 2010, poucos meses antes de ele nos deixar, em novembro, com apenas 67 anos.

Herdei seu programa semanal de música contemporânea da Rádio Cultura FM, que, claro, se chamava Caleidoscópio. Ele costumava gravar no estúdio, tendo ao alcance um teclado eletrônico para exemplificar suas colocações. Nunca disse isso a ninguém, mas desde o primeiro programa modestamente persegui um ideal próximo da formidável carta de princípios ecumênica que ele praticou com imensa sabedoria em tudo o que fez. 

Almeida Prado (1943-2010) (divulgação)
Almeida Prado (1943-2010) (divulgação)

Agenda
Lançamento do CD triplo Cantiga de amizade
Dia 12, Sociedade de Eubiose, São Paulo