Texto de João Marcos Coelho publicado na edição de outubro de 2005 da Revista CONCERTO
“Me deixem sair! Preciso de ar. É incrível! Maravilhoso! Fiquei tão perturbado que quando tentei colocar meu chapéu, não conseguia encontrar a cabeça.” Estas foram as palavras de Jean-François Lesueur, professor de Berlioz, na saída do concerto em Paris onde ouviu pela primeira vez a Quinta Sinfonia de Beethoven.
Pois é esta a reação que o compositor Mário Ficarelli busca provocar no público em suas setenta obras construídas ao longo dos 70 anos que acaba de completar. “Ainda hoje”, diz, “passados dois séculos, ao terminarmos de ouvir a 5ª Sinfonia de Beethoven, nosso primeiro impulso é o de reagir, normalmente batendo palmas, admirados. Que mágica é essa que esse homem conseguiu realizar? Simples: ele desnudou sua alma inteira nessa música. No entanto, as coisas mais simples são as mais difíceis de se realizar.”
Os 70 anos de Ficarelli serão comemorados este mês por meio do Festival Música Hoje 2005, no Centro Cultural São Paulo. O evento, que tem curadoria de Marcos Câmara, compõe-se de quatro concertos dedicados a sua obra a cargo de vários grupos e artistas brasileiros.
Filho de pintor de parede, Mário trabalhou como corretor da Bolsa de Valores, datilógrafo, pintor de rodapé e começou em música trabalhando na secretaria de uma escola. Em seguida deu aulas na FMU/FAAM e no Departamento de Música da USP, onde foi chefe do departamento por três mandatos. É hoje compositor internacionalmente respeitado e mantém uma rara honestidade criativa. Trilha desde sempre caminhos próprios, como se pode constatar nesta entrevista concedida à CONCERTO.
Setenta anos, em vias de conceber a Quarta Sinfonia, com a terceira estreada pela Osesp. A sensação é de nirvana pessoal e criativo?
Sensação de nirvana criativo, talvez sim. À medida que se amadurece, maior liberdade se apossa de nós. Seja para falar, seja para criar. De nirvana pessoal, não. Quando algumas pessoas me dizem que a música que escrevi as atingiu profundamente, sinto como se fora acrescentado um grande peso aos meus ombros. É cada vez maior a responsabilidade ao compor nova música, porque existe uma cobrança interior de permanente superação de si mesmo. Assim na vida como na música.
Como vê a criação musical hoje?
A criação musical de hoje somente sobrevive quando o compositor é extremamente honesto consigo mesmo e com a própria música. Ele é um decodificador das sensações todas que percebe a cada dia: seja das informações que lê no jornal sobre os rumos de seu país, seja das tragédias que se abatem e angustiam populações de outros países, seja pela cena deplorável de abandono de criancinhas de 7 ou 8 anos esmolando à meia-noite na esquina da Av. 9 de Julho com a Brasil, seja também da alegria de contemplar a pujança de minha cidade num grande congestionamento numa manhã chuvosa. Enfim, são os diversos quadros da vida, trágicos ou felizes, muitos dos quais provocam conflitos interiores, que impressionam um artista. Quando na intimidade de seu estúdio, ele deve filtrar tudo isso que lhe impressionou o íntimo e falar através de combinações sonoras para os que lhe são afins. Sempre existe alguém que escuta e se comove e pensa e considera tais coisas.
A verdadeira arte não é passageira. E para que não seja passageira tem que estar firmemente ancorada na compreensão de seus fins. Um compositor honesto serve à música e não se serve da música. Se alcança projeção ou não... isso não importa
Cadê as vanguardas, a experimentação radical dos anos 60? São apenas, como o senhor disse recentemente, “antigas novidades dos anos 60”? Só isso?
Todas as experiências são válidas, mesmo os radicalismos dos anos 60. Fica a essência. Cabe a cada um separar bem as coisas. Viver para frente e não se preocupar em fabricar novidades antigas. Cuidar para não se deixar influenciar por modismos ou pela necessidade de sentir-se aceito por determinados grupos. A verdadeira arte deixará de existir se sua finalidade for para lançar moda. A verdadeira arte não é passageira. E para que não seja passageira tem que estar firmemente ancorada na compreensão de seus fins. Um compositor honesto serve à música e não se serve da música. Se alcança projeção ou não... isso não importa. O que importa é que se esforçou ao máximo para cumprir bem sua tarefa, preocupou-se em não se valer de recursos que podem até mesmo confundir os desinformados para ter seu nome destacado na mídia. Por isso a responsabilidade aumentada que sinto a cada obra bem recebida.
Há quem diga que a pluralidade estilística – ou liberdade total – que o compositor tem hoje diante de si, sem patrulhamentos como no passado recente, é um fator positivo para a criação artística. É bom viver como pós-moderno?
É bom sim. Incomodava-me muito, por volta de 68, quando comecei a compor, a pressão que havia, de um lado o nacionalismo, e de outro, as tais vanguardas. Pensava que a única coisa que existia era a liberdade plena para alguém escrever o que quisesse. Não entendia o policiamento. Felizmente isso acabou. Hoje o compositor tem diante de si uma imensa quantidade de recursos. Mais uma vez invoco a responsabilidade: o que fazer diante de toda essa liberdade? Acredito que o compositor inteligente saberá escolher quais as ferramentas que melhor irão servir às suas propostas. Será como para um escritor escolher se vai escrever um romance, um poema, uma crônica, ou apenas um pensamento. Que vocabulário vai usar, simples ou sofisticado? Será detalhista ou sintético? É preciso antes de mais nada que ele saiba, no seu mais íntimo, se realmente tem alguma coisa para dizer. Sinto-me bastante à vontade neste tempo pós-moderno – escrevo a música que sinto dentro de mim, aliás, como sempre procedi. Não posso deixar de me lembrar do Grupo dos Cinco na Rússia, quando Korsakov, Balakirev e outros insistiam para que Tchaikovsky escrevesse música autenticamente russa, como eles pensavam. Mais tarde, a música do Sr. Piotr passou a ser tida como a mais russa entre todas. Pois é, ele não forçava a barra, como se diz.
O que chamo de ausência de conteúdo na música é a ausência de personalidade. É fundamental que haja estilo. Percebo muitos compositores que se apoiam apenas em técnicas composicionais. Isso quer dizer que eles não se põem de corpo e alma na música que escrevem. Parecem ter medo de se expor
Qual o lugar da música contemporânea num país como o Brasil?
A música de nosso tempo, no Brasil, tenho muito orgulho em dizer, é de uma riqueza e diversidade sem precedentes. Não sei quantos somos escrevendo música não comercial. 200, 300, 600? Não sei, mas é um número muito grande e com nível respeitável. A lama que está por cima encobre ainda as joias por debaixo dela. Quando os mandatários deste país não desdenharem a educação escolar e a honestidade em seus ofícios, dez anos depois, no máximo, as pessoas começarão a descobrir a verdadeira riqueza cultural do Brasil e vão estar muito mais atentas contra a imposição de supostos bens culturais que aparecem ofertados como pílulas douradas à população, endeusados pela televisão. Tenho certeza de que chegaremos lá – basta considerar a história de tantos países que há menos de um século eram privados de boas escolas.
O senhor diz que falta conteúdo à música de hoje. Isso quer dizer formação precária dos músicos, falta de informação teórica, o quê?
O que chamo de ausência de conteúdo na música é a ausência de personalidade. É fundamental que haja estilo. Percebo muitos compositores que se apoiam apenas em técnicas composicionais. Isso quer dizer que eles não se põem de corpo e alma na música que escrevem. Parecem ter medo de se expor. O que impede alguém de escrever acordes perfeitos ou acordes com meia dúzia de meios tons sobrepostos? Nada, é evidente. Mas não é essa a questão. Vou mais longe, é preciso compreender a força da música. Não é pela linguagem ou pelos efeitos que o compositor fala às pessoas. Ou seja, é o quê expressa e não como expressa. Qual a marca interior que ele coloca na sua música. O compositor não pode considerar os ouvintes como meros receptores passivos. Parodiando nosso presidente com suas comparações, o compositor tem que arrancar os uuuuuu! da torcida com a sua música. Do contrário, é música morna.
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