Um casamento arranjado, mas com final feliz

por João Luiz Sampaio 21/07/2025

É difícil compreender a junção de As fadas, de Puccini, e Dia de paz, de Strauss, em uma double bill; mas, vistas individualmente, elas ganharam interessante produção no Theatro Municipal de São Paulo

A ópera parece ter dificuldade em falar de paz.

Beethoven criou em Fidelio um manifesto em favor da amizade, da justiça. Mas usou uma estrutura de cenas antiquada, abandonou personagens pelo meio do caminho do espetáculo e deu a ele um fim apoteótico, que seria uma grande conquista da humanidade não fosse a chegada do ministro que sequestra para si a resolução do drama, tornando quase coadjuvante a luta de Leonora e Florestan.

Escrita 230 anos depois, às vésperas do início da Segunda Guerra, Dia de paz, de Richard Strauss, também pede por paz. Em tempos como o nosso, com duas guerras em curso, nos lembra dos horrores de um conflito e de seu impacto dilacerante sobre os indivíduos. E há, a serviço disso, a música de Strauss, com seus milagres de caracterização teatral. Mas nem ela é capaz de esconder: do ponto de vista da dramaturgia, é uma ópera bem desconjuntada.

A obra ganha atualmente sua primeira montagem latino-americana no Theatro Municipal de São Paulo. A história se passa no final de 1648. A Guerra dos 30 anos vai chegando ao fim, mas o imperador determina que o comandante de uma cidade sitiada siga resistindo. Do lado de fora, ele ouve do povo o relato da fome. Mesmo assim, resolve, para não desobedecer as ordens que recebeu, explodir a cidade. A paz, no entanto, é assinada, e o comandante, que a princípio desconfia das intenções do chefe do exército inimigo, acaba por ceder. Os dois se reconciliam e um grande coro celebra a paz e a fraternidade. 

O enredo foi imaginado por Stefan Zweig, com quem Strauss havia trabalhado em A mulher silenciosa. Mas, sentindo o cerco em torno dos judeus, ele resolveu se afastar do projeto. Em seu lugar, deixou como preposto o poeta Joseph Gregor. A correspondência entre Zweig e o compositor sugere algumas divergências. Strauss, por exemplo, fez questão de incluir na ópera uma história de amor, entre o Comandante e sua mulher Maria.

Os dois têm uma cena na metade da ação. Primeiro, Maria, misturando em seu canto o desejo de paz, o olhar do povo, sua humanidade, e a armadura, a simbólica e a real, que envolve o marido. Em seguida, o Comandante, misturando em seu canto o amor por Maria e o senso de dever que carrega. Ele pede a ela que se se salve e vá embora. Ela permanece ao seu lado.

Zweig escreveu a Strauss que a “junção do heroico com o amoroso é operística, mas no pior sentido da palavra”. O compositor rebateu: “É claro, o que lhe propus é operístico – mas onde termina o kitsch e começa a ópera?”. Haja pano, haja manga. Seja como for, Gregor soube contornar o problema com um texto que não cede ao lirismo de um dueto de amor. É a guerra ali também a protagonista.

Mas Gregor fez lá suas trapalhadas. Antes e depois do dueto, seu texto é esquemático. O Sentinela e o Sargento subscrevem o plano do comandante. O Mosqueteiro diz que recebeu seu soldo para guerrear, não para morrer. O Corneteiro recusa-se a seguir os violinos da morte. O oficial da linha de frente prevê a derrota. O prefeito implora pela rendição. O povo, faminto, pede pão. Mais didático impossível.

E há a figura do comandante. Ele demonstra preocupação com as tropas, mas não renuncia ao que entende como seu dever. Para cada passo adiante, um passo atrás. Isso não faz dele um personagem desinteressante, mas o libreto perde a chance de um confronto final entre ele e o chefe do exército inimigo (vêm à mente Diplomacia, peça de Cyril Géli e subsequente filme de Volker Schlöndorff, em que o diplomata sueco Raoul Nordling tenta convencer o general nazista Dietrich von Choltitz a não seguir adiante com o plano de explodir Paris). De volta à ópera: de novo, tudo é esquemático. Eu proponho a paz. Eu não confio. Maria pede ao marido que acredite. Ele cede. Coro final. 

Na montagem em cartaz no Municipal, no entanto, há vida para além da apoteose, e ela nasce em especial do elenco. Eiko Senda, como Maria, é a cantora que aprendemos a admirar pelo cuidado com o texto, a musicalidade, o gesto preciso. E apenas um cantor com os recursos do barítono Leonardo Neiva é capaz de dar ao Comandante, em um retrato em que a austeridade não esconde uma dimensão de desespero, as nuances que o papel não tem. Entre os demais personagens, o Prefeito do tenor Miguel Geraldi foi um achado, de canto tocante em sua elegância e expressividade. 

O belo trabalho de Eiko Senda e Leonardo Neiva é naturalmente favorecido pela concepção cênica de André Heller-Lopes, em seu retorno ao Theatro Municipal de São Paulo. Ele não se preocupa em ambientar a história em seu contexto original, mas tampouco assume a tarefa de colocá-la em meio à Segunda Guerra ou aos conflitos que testemunhamos hoje. 

A imagem de uma biblioteca inglesa bombardeada pelos nazistas até pode reivindicar uma conexão temporal específica, mas o uso que é feito dela e de outras referências permite na verdade que elas aproximem do espectador um imaginário associado à guerra que, justamente por ser atemporal, mostra que ela não é um momento de exceção, ou seja, perpassa o tempo como constante na vida humana. A guerra não é episódica, está sempre presente. O que isso diz a nosso respeito e sobre nossa tendência ao conflito? E, mais: até quando? São perguntas que nos acompanham ao final do espetáculo, mais interessantes que o enorme painel com a palavra paz em diversos idiomas que fecha o espetáculo.

Cena de 'Dia de paz', de Strauss [Divulgação/Rafael Salvador]
Cena de 'Dia de paz', de Strauss [Divulgação/Rafael Salvador]

 

Magia

Dia de paz foi precedida, no double bill proposto pelo Theatro Municipal, por Le villi, As fadas, a primeira ópera de Giacomo Puccini, estreada em 1884. Ela é baseada no conto de mesmo nome de Jean-Baptiste Alphonse Karr (e que boa ideia o reproduzir no programa de sala) sobre uma jovem, Anna, que morre após ser abandonada por Roberto. Mas, quando uma mulher morre com coração partido, as fadas da Floresta Negra assumem a tarefa de vingá-la.

No texto de programa, Heller-Lopes explica as conexões que criou entre as duas histórias. “O desafio era aproximar esse primeiro Puccini daquele Strauss tardio, fazendo com que os tempos e as estéticas das duas obras se encontrassem; propor um olhar sob o qual uma ópera pudesse ser o prelúdio da outra – ou ainda, que a última fosse o poslúdio de uma situação, de um tempo. Música, ditadura e a força do feminino são as forças motrizes desta double bill.” 

O diretor explica que fez com que o tenor que interpreta Roberto em As fadas interpretasse também o soldado piemontês que, no começo de Dia de paz, “canta do passado e do amor em italiano”. E estabeleceu uma relação, ainda que de oposição, entre os cenários das duas óperas (excelente trabalho de Bia Junqueira): “De posse desse elo de união entre as duas obras, foi possível entender que o espaço externo da ópera de Puccini não precisava ser, obrigatoriamente, um lugar do lado de fora, na floresta, mas sim um lugar que, apesar de lugar de decepção, tristeza e morte, ainda deixa perceber a luz da vida dos tempos de paz. Essa caixa de luz (e de memória/esperança?) opõe-se à fortaleza claustrofóbica da ópera de Strauss, tanto de forma física quanto num nível mais atemporal e filosófico: ela funciona como prelúdio para os acontecimentos terríveis da guerra, cujo final acompanharemos.”

É um malabarismo conceitual muito bem alinhavado, mas precisaríamos, para embarcar totalmente nele, aceitar As fadas como uma ópera em que impera a luz e que a lenda que a inspira não nos fala, na verdade, de sombras e de mistério, tão claramente colocados por Puccini em sua música. 

Parece claro que o conceito a aproximar as obras não nasce delas, mas é trazido de fora para dentro, em uma tentativa de justificar uma decisão artística que, no final das contas, parece arbitrária. A discussão que se coloca, então, é como se escolhem os títulos a serem encenados pelo teatro. Mais pano, mais manga. Mas a junção é um ponto fora da curva em uma temporada que, a partir dos 80 anos do fim da Segunda Guerra, tem sido capaz de estabelecer coerência e imaginação na escolha do repertório.

A boa notícia é que, conceitos à parte, Heller-Lopes cria com imaginação uma narrativa para As fadas e nos permite, se assim preferirmos, entender o double bill não como um conjunto, mas como dois espetáculos, encenados na mesma noite. O cenário na ópera de Puccini sugere uma modernidade que se propõe quase ascética, e obcecada pelo lucro, a mesma obsessão que faz Roberto abandonar Anna e se casar com a prima rica, em contraste com a ideia de amor e seu imponderável, sua capacidade de ir da paixão ao ódio, do lirismo à vingança. E os números de dança coreografados por Luiz Fernando Bongiovanni e o sensível trabalho de luz de Gonzalo Córdova ajudam a demarcar esses diferentes ambientes, como na ária de Anna, no início da ópera, em que ela manifesta o medo de que Roberto se esqueça dela ao partir para encontrar a família.

A ária, aliás, é representativa da música de As fadas. Costuma-se reconhecer nesse trabalho de juventude a riqueza melódica que o compositor desenvolveria na maturidade. Mas é possível ir além. Se come voi piccina io fossi é uma das árias mais bonitas de toda a carreira de Puccini, o que não é dizer pouco. E ganhou da soprano Gabriella Pace uma leitura sensível, delicada, revelando uma intérprete não apenas musical, mas capaz de usar de modo teatral, colorindo as palavras, as possibilidades expressivas de sua voz. 

E como soou bonita, equilibrada e expressiva a Orquestra Sinfônica Municipal sob regência de Priscila Bomfim, regente assistente do grupo, sempre na medida, entregando-se, sem perder-se, ao encanto e aos contrastes da escrita de Puccini, assim como recriando, em Dia de paz, o tom sombrio e duro, quase áspero, que a música de Strauss pode assumir. Sobre o Coro Lírico, no entanto, é preciso ser repetitivo: em ambas as óperas, faltou a atenção àquele espaço entre o piano e o forte, aquele em que de fato se faz música.

A atuação em cena do tenor Eric Herrero, com um gestual limitado e amaneirado, não fez jus, na noite de estreia, àquilo que a voz é capaz de oferecer, com efeitos tão bonitos, em especial no dueto entre Roberto e Anna. O barítono Rodrigo Esteves fez do pai da moça, com a autoridade de sempre e uma tocante leitura da ária em que chora a perda da filha.

As fadas e Dia de paz não nasceram uma para a outra. Mas o casamento arranjado, no final das contas, teve o final feliz possível.

[A produção segue em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo até o dia 27 de julho; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.]

Cena de 'As fadas', de Puccini [Divulgação/Rafael Salvador]
Cena de 'As fadas', de Puccini [Divulgação/Rafael Salvador]

 

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