Acervo CONCERTO: uma revolução em nove sinfonias

por Redação CONCERTO 15/10/2020

Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de agosto de 2013

Mais de um século e meio já se passou desde a morte do compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770- 1827), mas, aparentemente, todo esse tempo não foi suficiente para compreendermos em sua plenitude o imenso tesouro artístico que ele nos deixou. Assim é que, até hoje, Beethoven é nome central na atividade musical clássica de intérpretes, compositores, musicólogos e estudiosos.

Apesar de ter sido o autor da ópera Fidelio, de bonitos Lieder e de outras partituras vocais – entre as quais a Fantasia coral op. 80, a Missa solemnis op. 123, além do famoso último movimento de sua Sinfonia nº 9 –, é consenso que a singularidade da obra de Beethoven ocorre em sua produção instrumental. “A música de Beethoven põe em movimento a alavanca do medo, do temor, do horror, do sofrimento, despertando um anseio infinito, que é a essência do Romantismo. Ele é um compositor romântico completo. E isso não seria porque ele é menos bem-sucedido na música vocal, que elimina este anseio, pois ela meramente representa as emoções definidas por palavras? [...] É somente após uma investigação de sua música instrumental que se revela um elevado autodomínio, inseparável do verdadeiro gênio e alimentado pelo estudo da arte”, chegou a dizer o escritor e crítico musical E. T. A. Hoffmann (1776- 1822) em seu célebre ensaio “Beethovens Instrumentalmusik”. Publicado em 1814, ele já dava conta do impacto de nove das dez sinfonias que Beethoven compôs (não, caro leitor, não se trata de um erro nosso: Beethoven compôs dez sinfonias, como veremos adiante...). 

Pode parecer estranho associar à música de Beethoven palavras como “medo”, “temor”, “horror” e “sofrimento”, mas a percepção de Hoffmann é certeira, pois o compositor foi o primeiro agente da transformação de um ideal de música em voga havia séculos. Com ele, a música deixa sua condição de mero agrado para ser alçada à condição de sublime, conceito base da estética romântica como um todo e que tem em Beethoven seu precursor no campo da música. “Os objetos do sublime são vastos em suas dimensões, grandiosos, enquanto a beleza é comparativamente menor: a beleza deve ser suave e polida, o grandioso deve ser áspero e imprevidente; a beleza não pode ser obscura, o grandioso deve ser escuro ou mesmo sombrio; a beleza deve ser leve e delicada, o grandioso deve ser sólido e maciço. Trata-se de ideias de natureza muito diferentes: uma está fundamentada no prazer, a outra, na dor”, esclarece sobre a questão o filósofo Edmund Burke (1729-97), que de tabela elenca uma série de adjetivos comumente utilizados para definir a música de Beethoven e, desta forma, as bases de uma nova era na música. Em meio à vasta produção instrumental de Beethoven – que inclui dezenas de sonatas para piano, quartetos de cordas, concertos, aberturas orquestrais e muita música de câmara –, destaca-se o conjunto de sinfonias que ele compôs entre 1800 e 1824. Em pouco menos de um quarto de século, Beethoven ofereceu ao mundo um acervo musical que transformaria de forma definitiva a maneira como ouvimos e fazemos música. 

Já em 1792 Beethoven havia abandonado sua cidade natal, Bonn, para se fixar em Viena, então centro cultural do mundo germânico. Tal como seu predecessor Wolfgang Amadeus Mozart, Beethoven firmou sua reputação na sociedade vienense como pianista, mas tinha em mente planos mais ambiciosos (ainda que substancialmente diferentes dos de Mozart) para sua carreira. 

Em 2 de abril de 1800, organizou uma apresentação bem ao gosto do público da época – isso é, longa e cheia de música –, incluindo obras de Joseph Haydn, Mozart, seu Concerto para piano nº 2, algumas improvisações, o Septeto op. 20 (que foi uma de suas obras mais populares) e a estreia de sua Sinfonia nº 1, op. 21. 

Dificilmente alguém se lembra de algum trecho da primeira sinfonia de Haydn ou de Mozart, pois elas são frutos de uma arte ainda imatura e, principalmente, despretensiosa. Quando Beethoven dá por concluída sua primeira sinfonia (cujos esboços datam de 1795), ele conta com avançados 30 anos, sendo detentor de alguma maturidade musical e muita ambição. 

Apesar de ser considerada uma sinfonia essencialmente haydniana, já em seus primeiros acordes Beethoven mostra a que veio, deixando claro sua independência em relação ao mestre: em vez de expor um tema, ele “começa a música terminando”, isso é, inicia com uma cadência, que normalmente é utilizada para encerrar uma ideia musical, e não para começar! Apesar deste lampejo de ironia – outra fundamental característica de sua música –, Beethoven tende a seguir a receita aprimorada ao longo do século XVIII para construir exemplarmente suas Sinfonias nº 1 e nº 2, que sob o opus 36 foi estreada em 1803 no Theater an der Wien, palco que abrigaria outras estreias do compositor, como suas Sinfonias nºs 3, 5 e 6, seu Concerto para violino e seu Concerto para piano nº 4, além da Fantasia coral.

É tradição nos estudos sobre Beethoven dividir e compreender sua obra em três fases. A primeira refere-se a seus anos de formação e abarca, por exemplo, seus primeiros opus e suas duas primeiras sinfonias. Por sua vez, a mítica e experimental terceira fase inclui a Nona sinfonia e toda a ousadia harmônica de seus últimos quartetos de cordas, com especial destaque para a Grande fuga op. 133. A fase intermediária é aquela na qual se concentra o grosso de sua produção sinfônica, que se inicia com a Sinfonia nº 3, op. 55, cuja relevância transcende a esfera puramente musical. 

Por volta de 1798, Beethoven travou contato com um certo general Bernadotte, embaixador em Viena da França pós-  revolução, que o encorajou a compor uma sinfonia em homenagem a Napoleão Bonaparte. Porém, em 1804, quando a sinfonia já estava em estado avançado decomposição, Napoleão traiu todos os ideais da revolução ao se autoproclamar imperador. Quando Beethoven deu por concluída a partitura, riscou a dedicatória a Napoleão e a intitulou Sinfonia Eroica... composta per festeggiare il sovvenire di um grand uomo (Sinfonia heroica em homenagem à memória de um grande homem). Deste enorme título, de múltiplas conotações, restou apenas o termo italiano Eroica. Entretanto, a importância da obra não reside nas curiosidades factuais que cercam sua criação. 

Em tese, Beethoven passa a ser “Beethoven” a partir da Eroica, primeira obra de porte que ele compõe a partir de um anseio absolutamente pessoal. Escrever uma sinfonia demanda grande quantidade de tempo e papel, naquela época material bastante caro. Até então, era regra para qualquer compositor ter em vista alguma oportunidade comercial que valesse todo o investimento. Como Beethoven compõe a Eroica por iniciativa própria, isso reflete outra peculiaridade: o artista rompe com as convenções ao se colocar no cerne do discurso musical. As emoções que ele irá trabalhar ao longo de seus quatro movimentos não são generalizadas, o senso comum afetivo que então circulava na sociedade e na música de seus predecessores e contemporâneos. Trata-se de uma visão bastante pessoal das emoções, e justamente por isso sua materialização em música não encontrou respaldo na totalidade de sua audiência. 

Por sua vez, esta individualização emocional reflete-se na quebra de uma série de convenções no âmbito da escritura musical. Na Eroica, a sinfonia é ampliada para dimensões até então sem precedentes; seus temas são construídos nos extremos das emoções, brilhantes quando têm de ser heroicos e sombrios quando fúnebres; sua orquestração é densa e dramática, fazendo a orquestra soar maior do que ela realmente é. Com sua Sinfonia nº 3, Beethoven passa a estabelecer um novo patamar de criação musical que irá nortear não apenas suas obras futuras, mas também diferentes gerações de compositores ao longo do século XIX. 

A dita “fase heroica” de Beethoven compreende também outras importantes e famosas obras de seu repertório orquestral, na qual destacam-se as Sinfonias nº 5 e nº 6, esta também conhecida como Pastoral. Essas duas obras-primas foram estreadas num mesmo concerto, em 22 de dezembro de 1808, no Theater an der Wien (no qual ainda se ouviu seu Concerto para piano nº 4, a Fantasia coral e trechos da Missa op. 86), cada qual causando seu impacto. 

Se hoje em dia o “tchan tchan tchan tchaaaan” inicial da Sinfonia nº 5 foi banalizado das mais diferentes maneiras, na época de sua estreia a obra foi recebida com perplexidade, estranhamento e, para alguns poucos, com admiração. Este é o caso de E. T. A. Hoffmann, que novamente nos serve como testemunha ocular (e auricular) por meio de um famoso artigo no qual analisa sua partitura e celebra seus feitos artísticos. 

Na Quinta, duas questões destacam-se em sua elaboração. Primeiro, a ênfase numa escritura motívica em vez do tratamento temático do material melódico. Isso é, as famosas quatro notas iniciais não chegam a configurar uma ideia musical completa (como um “tema”). Não bastasse isso, praticamente toda a obra, e não apenas seu primeiro movimento, será estruturada a partir deste motivo, o que nos leva à segunda questão, ou seja, uma sinfonia cujas diferentes partes são pensadas como um todo orgânico originado de uma matéria-prima comum. Mais para frente, o pensamento motívico vai nos ajudar a compreender e a ouvir melhor compositores como Richard Wagner (famoso justamente por seus leitmotive, ou motivos condutores) e Gustav Mahler, cujas sinfonias expandem ao limiar a organicidade trabalhada por Beethoven em seu opus 67. 

Se por um lado a Quinta foi recebida pelo público da estreia com certa consternação, por outro, esta mesma plateia tendeu a se deliciar com sua Sinfonia nº 6, op. 68, a Pastoral. A obra foi, na prática, a única incursão do compositor pela sinfonia caratteristica, gênero no qual a estrutura da sinfonia é usada como suporte para ideias extramusicais. Nesta obra, Beethoven mergulha de forma totalmente idealizada no imaginário campestre para criar uma obra de sugestão idílica, na qual cada movimento remete a aspectos do cotidiano supostamente bucólico de camponeses e pastores. 

Àquela altura, entretanto, Beethoven já era detentor de uma escrita orquestral dramática, o que distancia a Pastoral da tradição da sinfonia caratteristica do Classicismo – marcada por uma linguagem disciplinada e elegante – para se tornar a precursora do poema sinfônico (ou Symphonische Dichtung, tal como cunhado por Franz Liszt), uma tendência de música programática que se desenvolverá ao longo do Romantismo, chegando até Richard Strauss no século XX.

Cada qual a sua maneira, as sinfonias nºs 4, 7 e 8 (estreadas, respectivamente, em 1807, 1813 e 1814) completam de modo estrutural o itinerário de Beethoven rumo ao cume da escritura orquestral e da independência da música instrumental em relação ao verbo, ainda que, paradoxalmente, ele tenha se valido dela para encerrar esta que é uma das grandes obras musicais de todos os tempos: a Nona. 

Em 1824, após um jejum sinfônico de uma década, Beethoven estreou seu famoso opus 125 no Theater am Kärntnertor, também em Viena. O trabalho se iniciara alguns anos antes, a partir de uma encomenda feita em 1817 pela Philharmonic Society of London. 

A princípio, podemos vislumbrar, na elaboração de seus três primeiros movimentos, a intenção do compositor em realizar uma espécie de Summa theologica de sua escritura orquestral. Mas, tal qual Tomás de Aquino, mais que “sumarizar”, Beethoven transcendeu os limites por ele mesmo delimitados da linguagem musical. Já no quarto movimento, empreende uma nova jornada pelo campo da música vocal, utilizando-se do poema Ode à alegria de Friedrich Schiller, com a participação de coral e solistas vocais. 

Neste último movimento, realiza-se um especialíssimo momento de metalinguagem: o movimento se inicia com elementos trabalhados anteriormente na sinfonia e com o tema musical que mais tarde acompanhará os versos de Schiller, de forma puramente instrumental, como uma espécie de premonição. Na segunda parte, após uma ruidosa introdução dos metais que Wagner apropriadamente chamou de Schreckensfanfaren (ou fanfarras do horror), Beethoven se utiliza de ideias vocais já trabalhadas em obras anteriores, como a Fantasia coral e a Missa solemnis. 

Além da adição das vozes, a massa sonora da Nona se agiganta também devido ao acréscimo de um par adicional de trompas (quatro no total), três trombones, um contrafagote e toda uma seção de percussão, que, além de tímpanos, inclui bumbo, triângulo e pratos. 

Muitas vezes utiliza-se a palavra monumental para definir a Nona de Beethoven. Mas sua monumentalidade não reside apenas na dimensão de seu efetivo musical e em sua duração. Como todo monumento que se preze, a Nona pode ser assim considerada também porque logrou tornar-se uma obra popular e facilmente reconhecível, ao mesmo tempo que encerra um nível de complexidade e riqueza artística cuja fruição é infinita. 

Além da Eroica, Napoleão Bonaparte surgiria novamente como “sujeito oculto” de outra sinfonia de Beethoven, ela mesma oculta dos cânones da história da música – até onde podemos ouvir, por excelentes motivos. 

Em 1813, o inglês Arthur Wellesley, então Duque de Wellington, comandou a derrota do exército francês num confronto que ficou conhecido como a Batalha de Vittoria, que colocou fim à era napoleônica. O feito causou grande comoção na Europa e, munido de grande senso de oportunidade, Beethoven compôs seu opus 91, ou a sinfonia Wellingtons Sieg oder die Schlacht bei Vittoria (A vitória de Wellington ou a batalha de Vittoria), hoje conhecida simplesmente como Sinfonia da batalha. A obra tem apenas dois movimentos, sendo o primeiro uma sucessão de marchas militares. Por seu apelo cívico-militar, Beethoven mandou às favas sua linguagem musical para se apropriar de todos os clichês de música marcial de fácil assimilação para o grande público. 

Esta partitura bizarra fez um grande sucesso e, muito astutamente, Beethoven tirou proveito não apenas de seus bônus financeiros, mas valeu-se da popularidade da Sinfonia da batalha para atrair público para suas Sinfonias nºs 7 e 8. 

Beethoven pode até ter conduzido a música e seus ouvintes às altas esferas do sublime, mas provou em vida que sabia muito bem ter os pés no chão para viabilizar seu projeto artístico e, claro, certo conforto de seu cotidiano doméstico. Afinal, não é só de inspiração celeste que vive um artista.

[Reprodução]
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