Texto de Leonardo Martinelli na Revista CONCERTO de maio de 2014
Na música, tal como na história geral, é fácil constatarmos o elogio e a apoteose de heróis e personagens revolucionários, que com talento mudaram os rumos da arte (quiçá do mundo). Mas qualquer abordagem mais crítica constatará que os heróis de verdade são poucos e que, também na música, os revolucionários se contam nos dedos da mão. (Vale lembrar que não é necessariamente o ímpeto inovador – ou mesmo iconoclasta – que por si só confere importância histórica e musical a um compositor; Vivaldi, Bach e Mozart não foram propriamente “inovadores”.) Mais raro ainda é encontrar alguém que, remetendo-se à tradição, não apenas conheça em vida o sucesso de público e o reconhecimento de seus pares, mas que ainda influencie os rumos da música que estava por vir. Este é exatamente o caso do Gluck, que com óperas como Orfeo ed Euridice e Alceste empreendeu um movimento reformista no gênero, cujos ecos reverberariam em compositores como Mozart, Beethoven, Weber, Berlioz e Wagner.
Nascido em 2 de julho de 1714, numa época em que a atividade profissional em música era algo que se herdava quase sempre da família, Christoph Willibald teve de mostrar, a duras penas, que seu talento musical era bom o suficiente para abdicar da confortável profissão que seu pai, Alexander Johannes Gluck, lhe reservara: a de guarda florestal! Por mais estranho que possa parecer hoje, tratava-se de uma posição de relativo prestígio social na época – o poderoso personagem Kuno, da ópera O franco-atirador, de Weber, tem exatamente o mesmo cargo que o pai de Gluck teve. Aliás, foi por conta do estreito contato com a nobreza que a atividade do patriarca propiciava que Christoph pode trocar os ares provincianos do interior da Boêmia – para onde o pai havia sido transferido – pelos grandes centros urbanos do império Austro-Húngaro. Assim, o jovem completou a formação primeiramente em Viena e depois em Praga, cidade que na década de 1730 abrigava inúmeras produções de óperas e oratórios em italiano e em cuja universidade o músico chegou a estudar também lógica e matemática.
Em 1737, Gluck mudou-se para a Itália, destino de todos aqueles que queriam se aprofundar na música. Em Milão, estudou com o compositor Giovanni Battista Sammartini, que era um dos precursores do estilo clássico e que, superando a lógica barroca de criação, lhe abriu as portas da música nova. Foi nessa cidade, no Teatro Regio Ducal, que o compositor estreou em 1741 sua primeira ópera, Artaserse, iniciando um longo ciclo de títulos líricos ao gosto italiano, quase sempre tomando como argumento enredos do poeta italiano Pietro Metastasio (1698-1782), que então dominavam a cena lírica.
Gluck compôs mais de vinte obras no gênero, com as quais viajou por diversos países da Europa, em turnês de pequenas companhias operísticas. Em 1754, finalmente fixou residência em Viena, onde passou a atuar como mestre de capela do imperador Leopoldo II, que lhe conferiu o título de nobreza “Ritter von Gluck” (ou “Cavaleiro Gluck”). Foi nessa época que Gluck, por livre e espontânea vontade, praticamente abandonou toda a lógica artística que o havia acompanhado até então e deixou de lado o dramma per musica italiano, passando a se dedicar ao gênero francês conhecido como opéra comique. De certa forma, esta guinada à la française não deixa de ser uma manifestação de insatisfação que Gluck nutria com a cultura operística de seu tempo. Em breve ele protagonizaria um dos mais importantes momentos da história da ópera.
O primeiro sinal de que a ópera passava por uma zona de turbulência ocorreu em 1752, quando Paris testemunhou um acalorado debate conhecido por Querelle des bouffons (ou Querela dos bufões), que, a partir da apresentação da ópera cômica La serva padrona, de Pergolesi, antagonizou os defensores da leveza da ópera bufa italiana (entre eles ninguém menos que o filósofo Jean-Jacques Rousseau) e aqueles que se colocavam em defesa da antiga tragédie lyrique francesa, gênero no qual se destaca a obra de Lully e Rameau.
Ainda que um tanto distante do debate parisiense, Gluck se sentia desconfortável em como a opera buffa tinha se reduzido a um conjunto de clichês e, por outro lado, a opera seria tinha se distanciado de sua natureza dramática e teatral para servir de palanque ao virtuosismo narcisístico dos cantores. Por sua vez, o estilo francês tal como se encontrava lhe parecia demasiado anacrônico frente aos novos ares musicais que passavam a soprar na música da segunda metade do século XVIII.
Assim, em outubro de 1762, contando com suporte financeiro do conde Giacomo Durazzo, parceria artística do coreógrafo Gasparo Angiolini, do castrato Gaetano Guadagni e do libretista Ranieri de Calzabigi (um dos principais críticos de Metastasio), Gluck levou à cena do Burgtheater de Viena seu Orfeo ed Euridice.
Cantado em italiano, o enredo da ópera em si já é um manifesto, pois, ao eleger a história do semideus e sua desesperada luta para salvar a amada do mundo dos mortos, Gluck remete-se diretamente às próprias origens da ópera, cujos temas, no início do século XVII, haviam inspirados compositores como Jacopo Peri e Claudio Monteverdi. Em sua gana de reformar a ópera, o compositor abriu mão de coloraturas e outras pirotecnias vocais, enfatizando uma escrita mais declamada, que valoriza a compreensão do texto. Paralelamente, reinseriu o coral à estrutura operística, naquele momento praticamente extinto na maioria das produções. Seu compromisso com a música francesa fica evidenciado pela boa quantidade de bailados previstos na partitura. Em 1767, quando estreou sua segunda ópera reformista, Alceste, Gluck reafirmou seu compromisso ao subscrever no prefácio da partitura que ele havia procurado “confinar a música à verdadeira função de servir à poesia, exprimindo os sentimentos e as situações do enredo sem interromper e esfriar a ação com ornamentos inúteis e supérfluos. [...] Cheguei também à conclusão de que minha tarefa consistia principalmente em procurar uma beleza simples e evitei todo o excesso de dificuldade que pudesse comprometer a clareza”.
Menos que uma “volta ao passado”, a reforma empreendida por Gluck reatou o laços entre a ópera e a poesia e, desta forma, acabou por propiciar ao espetáculo teatral maior fluência e um novo senso de tempo dramático. A nova tendência passou a orientar parte considerável da ópera clássica a partir de então e se fez ainda mais presente na ópera alemã e francesa do século XIX.
Animado com a ótima receptividade de suas “óperas reformadas” e com apoio de Maria Antonieta (austríaca de nascimento e futura imperatriz da França), Gluck firmou contrato com a Opéra de Paris para seis novos títulos, todos eles a ser cantados em francês. Em 1774, estreou Iphigénie en Aulide, que, por sua vez, reascendeu o clima de animosidade da querelle quando a opinião pública local o colocou como antagonista do compositor italiano Niccolò Piccinni. No mesmo ano, Gluck estreou a versão em francês de seu Orfeo ed Euridice. Nos anos seguinte comporia ainda obras-primas, como Armide (1777), Iphigénie en Tauride e Echo et Narciss (ambas em 1779). Foi na Cidade Luz que Gluck conheceu um jovem e talentoso compositor italiano, que logo tomaria como seu protegido – ninguém menos que Antonio Salieri. Mais tarde, Salieri acompanharia o mestre em seu retorno a Viena; Gluck então já estava desgastado pela idade e pelo clima de ebulição social que em breve rebentaria na Revolução Francesa.
Uma vez de volta a Viena, Gluck retomou sua popularidade com a versão em alemão de Iphigénie en Tauride. Mas o fato é que um derrame sofrido em 1779 havia debilitado muito sua condição de saúde; e ele, desde então, não havia composto nada novo. Em novembro de 1787, Gluck sofreu um novo derrame, fulminante, vindo a falecer aos 73 anos idade.
Uma prova do prestígio de Gluck à época de sua morte foi que seu sepultamento ocorreu no cemitério Matzleinsdorfer, privilégio de poucos artistas e pessoas notáveis de seu tempo.
Linha do tempo
1714
Nasce em Erasbach, sul da Alemanha, em 2 de julho
1731
Muda-se para Praga, onde realiza seus estudos
1737
Muda-se para Milão, onde tem aulas com Sammartini
1741
Estreia em Milão sua primeira ópera, Artaserse
1745
Viagem à Londres, ocasião em que conheceu Händel
1749
Sai em turnê com a companhia operística de Pietro Mingotti
1750
Passa a integrar a companhia operística de Giovanni Battista Locatelli
1754
Em Viena, torna-se mestre-de-capela da corte de Leopoldo II
1762
Estreia em Viena Orfeo ed Euridice, marco da reforma da ópera
1774
Em Paris, estreia Iphigénie en Aulide
1780
Retorna a Viena após sofrer o primeiro derrame
1787
Morre em Viena, em 15 de novembro